O carrinho de linha azul, publicado pela Editorial Presença, é o vigésimo romance de Anne Tyler, autora nascida nos Estados Unidos da América em 1941 e vencedora do Prémio Pulitzer. Esta obra, que assinala os 50 anos de carreira da autora, trata-se de uma saga familiar que atravessa o período da Depressão até aos dias de hoje e foi nomeado como um dos dez melhores do ano (de 2015, data da publicação original) em diversas publicações americanas.
Pode ler-se na contracapa que «Estava uma linda e fresca tarde em tons de verde e amarelo…» é como Abby Whitshank começa por contar a sua história de amor com Red, no verão de 1959. Os Whitshank, com os patriarcas Abby e Red, os seus quatro filhos e os netos, são uma típica família de classe média. Reunidos no alpendre parecem o retrato da felicidade, plenos de lembranças e a celebrar o passado que remonta aos anos 20, com a chegada dos pais de Red a Baltimore. Uma imagem de perfeição que se desintegra no momento em que atravessamos a porta de entrada, quando aos risos e celebrações se juntam segredos, ciúmes e desapontamentos, guardados entre as quatro paredes de uma casa antiga que já albergou quatro gerações. Como um carrinho de linhas, esta história desenrola-se entre passado e presente, revelando ao leitor a complexidade emocional desta família.».
A primeira parte do livro, que se estende até mais de metade do livro (mais precisamente até à pág. 232, num total de 374 páginas), conta a história dos Whitshank de forma mais ou menos linear, ao focar-se no período da velhice de Abby e Red, cujos primeiros sintomas de alguma senilidade (?) acabam por fazer regressar inclusivamente Denny, o filho pródigo. É aliás em torno da figura de Denny que a narrativa começa, quando decide ligar aos pais a anunciar que é homossexual para logo depois desligar, e percebe-se de imediato que esta autora é uma exímia contadora de histórias a desfiar o seu fio de Ariadne.
No primeiro capítulo, que é todo em torno de Denny, o filho mais velho, temos sempre uma focalização externa, construída a partir do que os pais sabem, e do muito que conjecturam, sobre a sua vida, e a tentar compreender da melhor forma possível um filho que desapareceu das suas vidas e só dá notícias de longe a longe, regressando de vez em quando: «ele proporcionava-lhes efectivamente algo com o qual podiam sempre contar: deixava um vazio quando se ia embora.» (pág. 46). Denny chega mesmo a estar três anos sem dar notícias aos pais, um contacto ou uma morada, mas ressurge sempre nos momentos de crise com efectivo condão de conseguir ajudar os que o rodeiam. É na casa dos pais que se irão reunir as duas irmãs e os dois irmãos, assim que se apercebem de que algo não está bem com a mãe, e vamos assistindo nos próximos capítulos a um acumular de tensões e de segredos que resultam inevitavelmente dessa proeza que é viver em família. Os diálogos, principalmente os de Abby com o marido, chegam a ser hilariantes, na sua complexa rede de mal-entendidos a que se junta a surdez do marido Red. Aliás não falta a este livro uma deliciosa ironia ou genuínos momentos de humor como quando a tia Merrick visita o irmão Red e fica abismada com a confusão que reina na casa, ao que Abby responde que se mudaram para lhes dar uma ajuda pois estão a ficar velhos, ao que Merrick replica: «-Eu também estou a ficar velha, mas nem por isso transformei a minha casa numa comuna.» (pág. 143).
É particularmente curiosa, e depois deliciosa, a forma coloquial como a autora vai desenrolando a narrativa nesta primeira parte, exactamente como quem conta uma história, onde não faltam marcas de oralidade e interpelando directamente o leitor. Mais à frente, chega mesmo a pontuar o texto com diversas notas explicativas entre parênteses. Diz-se que a história dos Whitshank se resume, na verdade, a duas histórias: «Talvez porque os Whitshank eram uma família tão recente que não tinham um historial familiar. Não tinham assim tantas histórias por onde escolher. Tiveram de aproveitar ao máximo o que tinham.» (pág. 64). Red a certa altura reflecte em como, para ele, «a felicidade da família era um dado adquirido. Não se preocupava com isso. Ao passo que Abby… oh, ela preocupava-se e muito. Não suportava pensar que a sua família pudesse ser uma família perfeitamente vulgar, confusa e desunida.» (pág. 178). Mas é na segunda e na terceira parte, que consistem em analepses onde ficamos a saber o que se passou com as gerações anteriores, que percebemos que a história de uma família é sempre muito mais do que aquilo que ficou gravado numa casa que albergou nessas várias gerações ou do que fica oficializado nas conversas que passam de pai para filho: temos um homem que se envolve com uma menor, a verdadeira identidade de uma mãe e descobrimos a juventude daqueles que nos habituámos a ver apenas como a mãe ou o avô…
Na quarta parte, uma conclusão rápida, percebemos que afinal o título tem mesmo razão de ser, e que o azul do título não é afinal por causa do baloiço no alpendre da casa – que dá aliás origem a uma das histórias mais cómicas do livro e que representa toda a subtileza de que se revestem certas disputas entre marido e mulher. E sobre a forma como os casais deste livro se conhecem, e sobre o mito do amor à primeira vista, já perto do final lemos algo que não passará despercebido a um leitor atento: «Às vezes olhamos para uma mulher, e ela olha para nós, e dá-se uma espécie de reconhecimento subtil, um momento de cumplicidade, e depois disso tudo pode acontecer. Ou não. Denny desviou o olhar e deitou o copo de papel dentro do cesto do lixo.» (pág. 368).
A escrita da autora é em geral concisa e despojada, a forma como trabalha a temporalidade é reveladora de um trabalho cuidado e de uma grande capacidade de criar personagens que são entidades vivas e nota-se uma grande atenção ao pormenor na moldura histórica em que a história encaixa quando nos leva aos tempos da Grande Depressão.
E um especial agradecimento à Editorial Presença que realmente consegue uma revisão à prova de bala, onde não se encontra um erro ou uma gralha… (bem, talvez um). Ver artigo
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