Em tempos foi feita uma sondagem aos portugueses e constatou-se que uma esmagadora maioria não se rendia aos livros de bolso. Talvez porque na altura ainda não fora lançada a magnífica Terra Incognita, uma fantástica colecção de livros de bolso da Quetzal destinados a viajantes, composta por títulos de autores como Paul Theroux, Geoff Dyer ou Bruce Chatwin.
Michel Onfray, filósofo e intelectual francês, fundador da Universidade Popular de Caen, gratuita e criada com base num manifesto seu, tem mais de 50 títulos, versando gastronomia, filosofia, pintura, história, literatura e geografia.
Este livro, tão pequeno quanto precioso, analisa os vários passos da viagem, desde os preparativos ao regresso, do rememorar da viagem e à revisitação pela escrita ao planear uma nova partida, pois a vida é uma errância e permanecer no mesmo local ou rever infindamente os mesmos lugares impede-nos de ler «o poema do mundo» na sua completude. Este não é um guia prático, mas sim um tratado filosófico, de início mais abstracto, num devaneio poético, até que os argumentos se começam a alinhavar numa sucessão lógica, onde o princípio do hedonismo e da liberdade são fios condutores.
Para Onfray, a viagem começa numa biblioteca ou numa livraria, o que honestamente me preocupou, atendendo à minha maníaca opção de nunca consultar nada sobre os destinos a que me proponho ou a que sou convidado a ir – mesmo quando parti um pouco às cegas para países desconhecidos onde iria viver durante anos (Polónia, Botsuana, cidade da Beira em Moçambique, tendo que evitar agilmente as várias tentativas de me impingirem vídeos e imagens dos lugares para onde me aventurava partir). Mas Onfray clarifica, felizmente, que uma «mera linha de um autor mesmo que mediano desperta mais o desejo pelo lugar descrito do que fotografias ou mesmo filmes, vídeos ou reportagens. Entre nós e o mundo, coloquemos prioritariamente as palavras.» (p. 26) Ao invés de limitar o nosso deslumbramento inicial ou iludir as expectativas com imagens, podemos, portanto, ficar com a vasta plurissignificação de um verso, onde pode caber toda a poesia do mundo por ver.
«O mundo, simultaneamente vasto e limitado, o eu de cada um no seu centro, a viagem como convite a desenhar, para si, uma rosa dos ventos, depois o domicílio para se sentar e cultivar uma identidade – eis aqui algumas referências num cosmo a priori sem alegria. A geografia serve antes de mais para elaborar uma poética da existência, para dar oportunidade ao corpo de funcionar como uma bela máquina sensual, capaz de conhecer exercitando cada um dos cinco sentidos, sozinhos ou combinados» (p. 87)
Não posso deixar de evocar aqui o Sapiens – De Animais a Deuses – História Breve da Humanidade, de Yuval Noah Harari, que analisa justamente como a humanidade começou como uma sociedade de caçadores-recolectores, o que implicava justamente errância e liberdade, aproveitando ao máximo os diversos recursos da natureza, até que com a Revolução Agrícola os nossos problemas parecem ter começado, numa luta inglória contra a terra que justifique o sedentarismo e uma ilusão de segurança ou conforto. Onfray começa justamente por remontar o gene da viagem aos tempos em que com Caim e Abel a humanidade se dividiu entre o camponês e o pastor, sendo que Abel, o pastor, terá sido justamente o favorito de Deus, ao ponto de desencadear a fúria fratricida. E é desde então que todas as «ideologias dominantes» exercem domínio e violência sobre as minorias nómadas, como o judeu errante ou os ciganos. Ver artigo
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