Se na obra A Vegetariana, da autora coreana Han Kang, a personagem começa pelo vegetarianismo para depois passar a querer anular-se enquanto mulher ou ser humano e transformar-se numa árvore, numa fuga ao real e numa oposição aos valores da sociedade contemporânea, neste romance de Sayaka Murata, Uma Questão de Conveniência, a protagonista é vista como estranha, mediante os padrões da sociedade dita normal, por levar uma vida pacata, simples e regrada, como empregada de uma loja de conveniência. Keiko tem 36 anos de idade, trabalha nessa loja há 18 anos, há 157 800 horas desde a sua primeira manhã, quando a loja abriu ao público, e não aspira a mais nada, para grande desconcerto da família e dos amigos, que também nunca lhe conheceram um namorado.
«Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã.» (p. 12)
Aquilo que em A Metamorfose, de Kafka, se prende com a diferença e com o desconcerto do mundo, é aqui vertido em desejo de ordem e normalidade. A loja de conveniência é como um aquário a partir do qual se avista o mundo exterior, mas sem nele se fundir, onde tudo é fácil de gerir, em gestos de autómato, que pretendem servir o outro, e o consumismo, pois o outro é aqui um cliente, que apenas está de passagem, a comprar algum bem descartável para uma necessidade imediata, seja um chocolate, um bolinho de arroz, ou uma bebida em lata.
«A campainha que avisa quando alguém entra na loja de conveniência ressoa nos meus ouvidos como o sino de uma igreja. É a certeza de que, sempre que eu abrir a porta, esta caixa envidraçada e iluminada estará à minha espera. Um mundo necessário, sólido e constante, que nunca para de funcionar. Tenho fé no mundo que há dentro desta caixa repleta de luz.» (p. 38)
O romance ganha contornos de alegoria dos tempos modernos, de uma vida anódina, em que multidões se confundem num único indivíduo, e os estereótipos abolem a singularidade de cada um, numa escrita que ganhava mais, há que dizer, em ser menos autoexplicativa, enquanto aborda temas como o papel das mulheres na sociedade, a maternidade/paternidade, a assexualidade ou o celibato voluntário.
«O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos.» (p. 83)
A vida é portanto feita de uma cadeia de expectativas a que temos de corresponder, sob risco de sermos alienados ou excluídos: «As pessoas continuam a meter-se nas nossas vidas mesmo depois de nos casarmos. Se não estivermos de algum modo a contribuir para a sociedade, mandam-nos procurar emprego. Se arranjamos emprego, querem que ganhemos bem. Se já estamos a ganhar bem, mandam-nos arranjar uma mulher e filhos… Somos toda a vida avaliados.» (p. 90)
A certa altura, Keiko aprende a defender-se, copiando os modelos das colegas, arrastando a voz, imitando-lhes a roupa e os acessórios, quase se confundindo com elas, mas não deixa de ser vista como alguém que vive de forma estranha. Até que ao conhecer um colega contestatário, inapto para funcionário da loja, e que passa a aproveitar-se de Keiko como um parasita, a jovem, na verdade já uma mulher, sente finalmente que a normalidade tão desejada pelos outros para si pode agora ser alcançada na sua vida, mesmo que isso implique abdicar daquilo que dá sentido à sua existência.
Uma Questão de Conveniência, publicado pela Dom Quixote, venceu o prémio Akutagawa e foi traduzido em mais de vinte países. Publicado em 2016, a edição portuguesa foi adaptada a partir da tradução brasileira feita por Rita Kohl, tradutora do japonês formada em Letras pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Literatura Comparada pela Universidade de Tóquio.
Sayaka Murata nasceu em Inzai, no Japão, em 1979. É uma das vozes mais originais da ficção contemporânea japonesa, e uma das mais mediáticas romancistas da actualidade, escreveu para a revista Granta e foi nomeada Mulher do Ano pela revista Vogue japonesa em 2016. Trabalha a tempo parcial numa loja de conveniência, na cidade de Tóquio, alegando que a observação do quotidiano das pessoas que frequentam a loja é inspiradora para a sua obra. Ver artigo
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016
Etiquetas
Akiara
Alfaguara
Annie Ernaux
Antígona
ASA
Bertrand
Bertrand Editora
Booker Prize
Caminho
casa das Letras
Cavalo de Ferro
Companhia das Letras
Dom Quixote
Editorial Presença
Edições Tinta-da-china
Elena Ferrante
Elsinore
Fábula
Gradiva
Hélia Correia
Isabel Allende
Juliet Marillier
Leya
Lilliput
Livros do Brasil
Lídia Jorge
Margaret Atwood
Minotauro
New York Times
Nobel da Literatura
Nuvem de Letras
Pergaminho
Planeta
Porto Editora
Prémio Renaudot
Quetzal
Relógio d'Água
Relógio d’Água
Série
Temas e Debates
Teorema
The New York Times
Trilogia
Tânia Ganho
Um Lugar ao Sol