Conforme comecei a viver fora (e já lá vão 8 anos) e, por conseguinte, a viajar mais dentro e ao redor dos países onde tenho vivido, há um autor que se tem tornado um guia, dos sítios por onde andei e dos locais aonde alimento a esperança de ir. Enquanto vivi no Botsuana fiz-me acompanhar do Viagem por África, quando viajei por Angola e Namíbia, percorri simultaneamente as páginas de O último comboio para a Zona Verde, quando vivia na Beira, e era impossível pensar em viajar por uns tempos, após a passagem do ciclone Idai, embarquei n’O Grande Bazar Ferroviário, e agora, numa ilha fechada há mais de um ano, e a fazer quase 3 meses de confinamento, sem praticamente sair de casa se não uma vez de duas em duas semanas para me abastecer de comida, era altura de voltar a mudar de ares. Na Planície das Serpentes – Uma Viagem pelo México, de Paul Theroux, autor publicado pela Quetzal, era a fuga possível. Ver artigo
Com dezenas de livros publicados, vários deles publicados em Portugal pela Quetzal, tendo vivido fora dos Estados Unidos por uma década, pela Europa, Ásia e África, como professor ou escritor em serviço, esta é a primeira vez que o autor viaja justamente com o intuito de escrever, mas o risco assumido de escrever sobre uma viagem que não implica ficção, nem autoficção, nem um plano estudado, resultou num êxito de vendas, originalmente publicado entre nós em 2008. Como o próprio autor elucida no prefácio: «O livro de viagens era uma maçada. Era um maçador que o escrevia e eram uns maçadores que o liam.» (p. 11)
Neste denso relato de quase 400 páginas, que intenta tão somente fazer o relato de uma viagem, com partida em Londres no Expresso do Oriente, e atravessando a Turquia, o Irão, o Balochistão, Paquistão, Vietname, China, Mongólia e União Soviética, o autor leva-nos numa delirante viagem feita em 1973 que dura cerca de 4 meses e implica 30 comboios diferentes. A ideia aqui não é aterrar no destino, mas testar-se continuamente e autodescobrir-se numa aventura que lhe pode custar a vida e a sanidade.
Paul Theroux limita-se a narrar factualmente aquilo que presencia, dentro e fora do comboio, em especial os diálogos, em jeito de documentário, que estabelece com as pessoas com quem se cruza ou que vão irrompendo pelo seu compartimento: «Houve um drama perto de Niṧ. Numa estrada perto da linha, uma multidão batia-se para olhar para um cavalo, ainda com os seus arreios e preso a uma carroça sobrecarregada, que jazia morto, de lado, num charco de lama em que a carroça estava obviamente atolada. (…) crianças chamavam os amigos, um homem deixava cair a bicicleta e corria para trás para dar uma olhadela, e mais adiante um homem que urinava contra uma cerca esforçava-se por ver o cavalo. A cena estava composta como uma pintura flamenga em que o homem que urinava era um pormenor realista.» (p. 53)
Paul Theroux cede muito pouco à autocontemplação ou à recriação. Apenas nas páginas finais revela um pouco o que sente, conforme se aproxima o final da sua viagem, onde desvela aquilo que um viajante experiente já sabe: «Toda a viagem é circular. Eu tinha andado aos solavancos pela Ásia, fazendo uma parábola num dos hemisférios do planeta. Afinal, o grande circuito é apenas o modo de o homem inspirado se dirigir a casa.
E tinha aprendido aquilo em que sempre acreditara secretamente, que a diferença entre a escrita de viagens e a ficção é a diferença entre registar o que os olhos veem e descobrir o que a imaginação sabe.» (p. 379)
E assim terminará esta nossa viagem, num círculo fechado, em que se chega ao ponto de partida, como um livro que se fecha para depois voltar a ler, como uma viagem de comboio que se repete mas que será sempre nova apesar de já termos visitado aqueles apeadeiros e estações.
Regressado a África 10 anos depois da sua última visita, Paul Theroux aproveita para visitar os bairros pobres da Cidade do Cabo, não numa «pornografia da pobreza», similar ao «turismo de bairro de lata» da Índia e América do Sul, mas para verificar se houve de facto desenvolvimento nos bairros que conheceu antigamente e que foram recebendo ajudas externas. A sua ideia é partir da Cidade do Cabo, atravessar a Namíbia e chegar ao Norte de África, mas o que encontra em Angola é tão brutal que acaba por desistir da viagem. O autor apresenta África, esse «continente infestado de conselheiros estrangeiros», em toda a sua crueza, desde a instabilidade política que ainda se vive na África do Sul pós-apartheid, apesar de líderes políticos ainda cantarem hinos como «Disparem sobre o boer», sendo depois apoiados por vedetas como o Bono dos U2 que compara essa música às canções populares da Irlanda do Norte, até ao facto de os países continuarem a sugar ajudas externas vindas de almas caridosas – do mundo do cinema ao das organizações internacionais -, o que só inviabiliza, segundo Theroux, que as economias se possam sustentar de modo autónomo, sem propriamente querer criticar a caridade mas considerando que muitos desses gestos são mal orientados. Deixo aqui a sua introdução à Namíbia, país que me preparo para atravessar a partir de amanhã, mais ou menos seguindo a peugada deste autor:
«A Namíbia – um país grande, com pouca população e formado sobretudo por deserto árido e pedregoso – recebe a atenção de muitos americanos caridosos. Só existe uma cidade no país, e não é propriamente uma cidade: Windhoek, a capital, tem duzentos e cinquenta mil habitantes. É do mesmo tamanho que Newark, Nova Jérsia, e posso acreditar que muitos visitantes de Newark a Windhoek fazem a viagem com a ideia de dizer aos locais como devem viver.
De facto, Newark e Windhoek enfrentam alguns problemas semelhantes. Ambas as cidades lutam para manterem programas de literacia e reduzirem a probreza e o desemprego. Há uma diferença: o número de alunos que terminam o ensino secundário é maior em Windhoek do que em Newark (…). Os arredores de Windhoek são perigosos, sim, e, embora se cometam menos homicídios do que em Newark, há o dobro dos roubos e três vezes mais assaltos. Os windhoekianos são, no entanto, ostensivamente mais delicados. Windhoek possui um clima mais ameno do que Newark e tem acesso a minas de diamantes. Não fica longe de uma costa impoluta e e há manadas de leões e de elefantes que vagueiam nas redondezas. As ruas de Windhoek também são mais limpas do que as de Newark.» (pp. 109-10).
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