Uma Porta Estreita é o novo romance de Joanne Harris, autora publicada pelas Edições ASA, mais conhecida pelo romance Chocolate. Com tradução de Ana Saldanha, este livro integra (e possivelmente encerra) uma série de romances cuja ação decorre no Colégio de St. Oswald, como Xeque ao Rei e Uma Questão de Classe. A ação dos vários livros (ainda que publicados com anos de intervalo) decorre de forma contínua, como se cada livro correspondesse a um ano letivo. Ver artigo
Joanne Harris é uma escritora que passa sempre à frente das dezenas de livros que ameaçam fazer a minha cabeceira soçobrar… Este livro, publicado 20 anos depois de Chocolate, o primeiro livro que li da autora, mais ou menos quando saiu o filme, é um regresso ao universo mágico da pequena vila de Lansquenet-sous-Tannes, o que perfaz uma série de 4 romances – com Sapatos de Rebuçado e O Aroma das Especiarias. Todos os livros da autora – da série Chocolate e outros, inclusive infanto-juvenis – integram o catálogo das Edições ASA.
Vianne Rocher – e acho que é difícil dissociar a personagem de Juliette Binoche, actriz que a interpretou, como sempre acontece quando se vê uma adaptação de um livro ao cinema – continua a viver em Lansquenet-sous-Tannes onde mantém a sua chocolataria. Em tempos repudiada, é agora uma mulher respeitada e que, de forma subtil e imperceptível, continua a ajudar os habitantes da vila, através do cheiro enfeitiçante do chocolate quente que tem o condão de os fazer desoprimir-se do fardo que carregam, de segredos e de pecados erroneamente assumidos. Mas esta bruxa boa também carrega um segredo (…)
Vianne Rocher – e acho que é difícil dissociar a personagem de Juliette Binoche, actriz que a interpretou, como sempre acontece quando se vê uma adaptação de um livro ao cinema – continua a viver em Lansquenet-sous-Tannes onde mantém a sua chocolataria. Em tempos repudiada, é agora uma mulher respeitada e que, de forma subtil e imperceptível, continua a ajudar os habitantes da vila, através do cheiro enfeitiçante do chocolate quente que tem o condão de os fazer desoprimir-se do fardo que carregam, de segredos e de pecados erroneamente assumidos. Mas esta bruxa boa também carrega um segredo (…)
Mais uma vez os títulos em português nem sempre fazem muito jus à obra da autora, normalmente considerada como literatura chick ou light. Neste caso particular o título até está muito próximo do original. A obra não está ao nível de Xeque ao Rei, que consegue um dos voltefaces mais fantásticos na ficção publicada nos últimos anos, mas que mais uma vez se perde com a tradução para o português (aconselho vivamente a ler a obra no original para ser verdadeiramente surpreendido no último capítulo), mas é um agradável regresso da autora e ao universo dessa obra. Reencontramos Roy Straitley, professor em St. Oswald, um colégio de rapazes, «um velho Rei solitário no tabuleiro de xadrez», um baluarte – ou dinossauro – de um método mais tradicional de aulas, além de ensinar justamente essa língua “morta” que é o latim há 34 anos. Enquanto St. Oswald ainda sofre do rescaldo dessa anterior tragédia, situação ocorrida anos antes e que resulta na morte de uma menina local, uma nova ameaça paira sobre a instituição que deveria ser um modelo de exemplaridade e excelência. Mais uma vez a autora não foge a temas mais actuais – como fez em O aroma das especiarias – e a pedofilia, o fanatismo religioso e a tortuosidade de certas mentes perversas são as forças que ameaçam o colégio.
Escrito em planos alternados, entre um ex-aluno (de identidade desconhecida mas indiciada desde o início…) que tem desígnios de vingança e segredos terríveis e o tom mais intimista do professor que narra as peripécias do colégio quando este é gerido por uma nova administração que traz perigos como PowerPoints, comunicados feitos exclusivamente por email e, pasme-se, um ensino misto de raparigas e rapazes. Mas não se julgue que Roy não é uma personagem simpática, é aliás uma figura bem divertida, com os seus próprios maus hábitos, o seu mau feitio, os alunos-mascote que também o respeitam e defendem, e os insights que nos chegam a partir da sua perspectiva são repletos de genuíno humor.
Quando li dois livros na passada semana, a marcar o início oficial das férias, lembrei-me, devido aos titulos em questão, daquelas pessoas que têm o hábito detestável de forrar os seus livros nos transportes públicos. Mas, paradoxalmente, dei por mim a compreender melhor essa atitude de ocultação pois, a marcar o início da minha época balnear, composta de leituras adiadas há um ano, li de enfiada dois livros e ambos com um certo prazer culpado, que quase me fez lê-los apenas às escondidas. Quase decidi escrever aqui sobre o primeiro dos dois, que foi, inevitavelmente, o Inferno, de Dan Brown, pois mesmo que seja para criticar pela negativa não posso evitar a leitura. Sobre esse senhor talvez fale mais à frente no tempo, mas interessa-me agora escrever sobre – e porque afinal estamos em época de praia e de coisas mais light, nomeadamente leituras leves também – esse outro romance, que me prendeu logo nas primeiras linhas: O Aroma das Especiarias, último romance de Joanne Harris.
Não vou estar com paliativos. O título é horrendo, mas isso é culpa das editoras, pois actualmente os títulos de filmes e livros estão de tal forma enredados e, por vezes, desfazados do original que depois deixam um travo amargo com certos títulos delicodoces como este que fazem lembrar tudo e não dizem nada. Outra questão bem actual é a forma como tudo parece vir em séries. Mas por vezes as trilogias ou sagas trazem esse prazer reconfortante de voltar a um lugar ou a uma personagem cuja força não se esgota num único romance. Este livro fecha – ou retoma (pois a autora diz que é bem possível voltar novamente a estas personagens) – o ciclo iniciado com o bem conhecido Chocolate que originou um filme que recebeu nomeações aos Óscares. Quando descobri a obra desta autora foi justamente com o livro Chocolate que eu incluí (erradamente) numa espécie de subliteratura para senhoras, agora muito na moda. Mas este êxito comercial surpreendeu-me pois vinha imbuído de originalidade e de qualidade. Fui levado pela voz de Vianne Rocher que segue o vento, segundo uma espécie de maldição de família, até chegar a uma pequena localidade francesa, chamada Lansquenet, onde vai abrir uma chocolataria em plena Quaresma, provocando a hostilidade do padre e de outros locais. Aí percebemos que ela é mais do que uma simples dona de casa pois não só herdou um receituário de antigas receitas de chocolate como tem o condão de pôr a falar as pessoas mais duras. O sabor do chocolate quente funciona como uma mezinha que ajuda a derreter o coração das pessoas, além de Vianne saber sempre quais são os chocolates favoritos de cada um dos seus clientes, chegando assim pela boca ao seu âmago.
Se bem que no seu segundo livro, Vinho Mágico, o leitor regresse ainda a esse universo de sabores, em que uma garrafa de vinho conta uma história passada na mesma localidade de Lansquenet, só voltamos a encontrar Vianne muitos anos (e romances) depois, em Sapatos de Rebuçado, quando a sua vida e verdadeira identidade são ameaçadas por uma mulher maléfica porque, talvez, seja demasiado parecida consigo e consiga ler bem demais a sua natureza, portadora de uns magnificos sapatos vermelhos que brilham como cristal ou como rebuçado. Cinco quartos de laranja seria o último dessa trilogia sobre a comida, em que uma jovem, Framboise, volta também a uma localidade rural, acompanhada por um velho livro de receitas, herança da sua mãe, e abre uma casa de crepes. Em Peaches for Monsieur Le Curé, traduzido com o infeliz título de O Aroma das Especiarias ainda que este se justifique dado o tema, sente-se ainda esse dilema de uma alma nómada, fadada a seguir o vento para onde ele sopra e a ajudar aqueles que precisam de si, sem poder criar grandes laços afectivos, tanto que a sua relação amorosa continua mas havendo um forte sentido de autonomia entre ambos os parceiros além de que vivem numa casa fluvial, isto é, num barco ancorado no Sena. Chegada novamente, desta feita durante o Ramadão, à localidade de Lansquenet, que aqui mais parece uma alegoria da França, Vianne vai ser confrontada com uma espécie de alter ego. O cenário está agora repleto de novos habitantes, pois instalou-se uma comunidade muçulmana no outro lado do rio, que chega mesmo a improvisar uma mesquita onde até a chaminé de uma antiga fábrica é aproveitada como torre de onde se fazem ouvir os chamamentos para as orações. A “Dama Escorpião”, uma mulher que anda permanentemente coberta de negro, vai provocar o desconforto nessa pacata comunidade, não só entre a população local como entre os próprios muçulmanos, quando chega a abrir uma escola para raparigas (no antigo espaço abandonado da chocolataria) ensinando-lhes o valor da tradição e de se respeitarem ao andarem cobertas. E Vianne, apesar de atacada e ofendida, vai acabar por aprofundar a sua relação com o padre que antes a hostilizava, da mesma forma que irá ajudar a sarar a divisão que grassa entre as duas comunidades e no seio de cada uma.
O livro está efectivamente bem escrito e as personagens são detentoras de densidade psicológica, além de que se consegue manter o suspense até final da história quando finalmente se percebe o que esconde a mulher de negro por trás daquele véu. A tensão que se vai criando ao longo da história, que é contada, pela primeira vez nesta série, a duas vozes, alternando o registo na primeira pessoa entre Vianne, essa xamã do chocolate, e o padre, só é resolvida mesmo no final do romance e consegue criar um forte impacto no leitor, quando finalmente se percebe os obscuros segredos que motivam o estranho comportamento de Inès, a Dama Escorpião.
Quando penso no prazer de ler Joanne Harris lembro-me ainda muito bem de outro livro fabuloso, cujo título Gentlemen & Players foi traduzido por Xeque ao Rei. Esse romance marcou-me imenso ao ponto de me provocar uma genuína exclamação de surpresa que encontrou eco na reacção de admiração despertada noutras pessoas a quem fiz questão de oferecer o livro mas na sua versão original. Sem querer criar aqui um spoiler tenho que dizer que esta autora consegue, durante todo o romance, criar uma tensão idêntica, em que as informações vão sendo dadas espaçadamente, numa longa e lenta digestão de uma história original, que narra o desenrolar de uma amizade quase obsessiva de um rapaz em relação ao outro, num registo mais uma vez paralelo com a história de um professor do colégio onde um dos rapazes estuda. Só nos últimos capítulos percebemos que aquele jovem que vive nas imediações de um colégio interno de rapazes e que se aproxima por uma espécie de platonismo do outro rapaz, aluno interno do colégio, até quase inundar a sua vida, é, afinal, outra pessoa, instituindo assim um inovador e aprazível jogo ficcional que, infelizmente, se perde na tradução, mas nem por isso rouba o prazer e o impacto da surpresa a um leitor contemporâneo, que é cada vez mais difícil de surpreender.
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