Depois de O Nervo Ótico, o seu romance de estreia, a Dom Quixote publica agora Hotel Melancólico, de María Gainza, onde, à semelhança da obra anterior, esta autora argentina faz luz sobre a memória e a recriação fictícia da memória, a ficção e a realidade, com a arte e a literatura como ponto de referência.
A narradora que dá entrada no Hotel Étoile foi em tempos uma crítica de arte com carreira e prestígio e conta-nos como, aos 25 anos, começou a trabalhar com uma avaliadora de obras de arte. Enriqueta, com o seu «olho de falcão», rapidamente a perfilha, ensinando-lhe tudo o que sabe sobre falsificações e transmitindo-lhe histórias da sua própria vida como a do Hotel Melancólico, onde viviam artistas que copiavam quadros para ganhar a vida, em particular a Negra, que mais do que copiar “pinta à maneira dos artistas”, e se torna a figura central deste romance, o ponto de fuga onde converge a própria história da narradora.
O título original do romance é La Luz Negra, o que aliás ilumina melhor a arquitectura da narrativa, quando começamos a conhecer Enriqueta, «rejeitava completamente qualquer avanço tecnológico em matéria de autenticação de uma obra, confiando apenas numa lanterna que emitia uma ténue radiação azul e lhe cabia na palma da mão – «a luz negra», como lhe chamavam no meio forense.» (p. 15)
Como símbolos secretos num quadro, esta narrativa é pontuada por diversos pormenores, como a personagem esquiva de Negra, a luz negra que revela o oculto nas várias camadas de um artefacto, o ensino da arte que fomenta a cópia como imitação do passado, a falsificação de uma obra de arte poder ser superior a um original, a vida assente numa história bem contada que passa por verdade, as lacunas de uma biografia como espaços negros que enriquecem a narrativa dessa vida, a palavra «negra» designar em espanhol um «escritor fantasma», a memória como uma Negra…
«Há quem acredite que a memória é um telescópio capaz de captar o passado com a mesma precisão com que o Hubble captou os Pilares da Criação; exige apenas um esforço sustentado de concentração e vontade. A memória deve ter um bom assessor de imprensa porque na realidade, como instrumento de precisão ótica, me parece pouco mais do que um caleidoscópio de feira. Reconstruir uma experiência através de imagens armazenadas no nosso cérebro é um ato que, por vezes, confina com a alucinação.» (p. 100)
Jonah Lehrer fala justamente de como a memória se reinventa e pinta um quadro no seu ensaio Proust era um neurocientista – Como a arte antecipa a ciência.
O humor que aqui perpassa é, também ele, negro, à semelhança do sorriso torto e enviesado da protagonista, tal como a própria voz narrativa é irreverente e original, num registo que anda entre a ficção e o ensaio, com laivos de subtil perspicácia sobre a vida e a arte, e de como a arte se reflecte na vida (e não o inverso): «havia dias em que, se o céu ao entardecer fosse límpido, uma rara combinação de radiação solar, poluição e anúncios de néon banhava todo o espaço à nossa volta de uma luz cor de maçã assada, a mesma dos quadros do pré-rafaelita Burne-Jones.» (p. 17) Ver artigo
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