Lições de Grego, de Han Kang, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é o mais recente livro da autora coreana publicada pela Dom Quixote, e de que tenho lido tudo. Como foi recentemente noticiado, a atribuição do Prémio Médicis Étranger (pois passou-se a contemplar autores estrangeiros) foi em ex-aequo, a Lídia Jorge e a Hang Kang. O Médicis Étranger premeia a edição francesa de Impossibles Adieux que a Dom Quixote já anunciou que será publicado em 2024. Ver artigo
A decisão tomada na Primavera de escrever sobre coisas brancas. Uma lista em que a cada item há um estremecimento de decisão. A percepção de como a escrita pode ser regeneração. Reencontrar a brancura das palavras no branco da página escrita. Ouvir o silêncio. Descobrir o sentido das palavras. Despertar memórias tão antigas que parecem esquecidas numa cidade estranha. Mergulhar no passado para voltar à vida. Ressurgir do nevoeiro.
A autora narra na primeira pessoa como chegou a uma cidade estranha e procura um apartamento, sendo que a primeira coisa a fazer é comprar uma lata de tinta e pintar de branco a porta. Ao andar pela rua, onde todas as palavras são estranhas, e os fragmentos de conversas incompreensíveis, a autora encontra no isolamento «fragmentos inesperados de recordações» (p. 23), tão opressivos quanto a urgência em grafá-los no papel.
A «Cidade Branca» é indiciada, mas nunca designada. Mas para quem lá viveu (como é o meu caso) ou para quem conhece a história, facilmente encontra a resposta unindo as várias pistas: 95% da cidade dizimada em seis meses, a partir de Outubro de 1944; a ilusão de uma cidade coberta por um manto branco de neve ou gelo numas filmagens, quando na verdade a cidade está reduzida a cinza; nada existe há mais de 70 anos, e tudo o que foi erigido é uma reconstrução a partir de imagens, fotografias, mapas.
Mas o fantasma branco que reemerge do nevoeiro e conduz verdadeiramente a narrativa é a sua irmã, o primeiro bebé que a mãe teve e que apenas viveu duas horas. A criança cuja sobrevivência poderia significar a não-existência da autora. E é em torno do luto dessa irmã nunca conhecida, «uma menina com um rosto tão branco como um bolo de arroz em forma de meia-lua» (p. 19), que a autora une os vários símbolos da narrativa, quase todos ligados à morte (e por conseguinte à vida): a neve; o recém-nascido branco (e o branco é aqui não só a pureza mas a ausência de cor de uma morte definitiva) envolto em panos brancos; o leite materno que a mãe expulsará do peito; ossos desfeitos em pó; magnólias que significam revivificação (as flores brancas são a morte ou a vida?); cubos de açúcar; um grou; estrelas; nuvens; nevoeiro; fantasmas; a Lua; os primeiros dentes de um bebé; arroz branco cozido e que representa uma oferenda; um sudário branco; vestes brancas de luto queimadas e dissipadas em fumo branco; papel branco…
Han Kang nasceu na Coreia do Sul e venceu o Prémio Man Booker International em 2016 com A Vegetariana. Depois de Atos Humanos este é o terceiro livro da autora publicado entre nós pela Dom Quixote, e resulta de uma residência literária em Varsóvia.
Um livro experimental, parcialmente autobiográfico, poético, em jeito de glossário, de pensamentos soltos sobre a vida, a morte, a beleza. Uma nota final para a própria capa do livro, belíssima, inevitavelmente branca, com letras prateadas, e um marcador a preto e branco…
A autora narra na primeira pessoa como chegou a uma cidade estranha e procura um apartamento, sendo que a primeira coisa a fazer é comprar uma lata de tinta e pintar de branco a porta. Ao andar pela rua, onde todas as palavras são estranhas, e os fragmentos de conversas incompreensíveis, a autora encontra no isolamento «fragmentos inesperados de recordações» (p. 23), tão opressivos quanto a urgência em grafá-los no papel.
A «Cidade Branca» é indiciada, mas nunca designada. Mas para quem lá viveu (como é o meu caso) ou para quem conhece a história, facilmente encontra a resposta unindo as várias pistas: 95% da cidade dizimada em seis meses, a partir de Outubro de 1944; a ilusão de uma cidade coberta por um manto branco de neve ou gelo numas filmagens, quando na verdade a cidade está reduzida a cinza; nada existe há mais de 70 anos, e tudo o que foi erigido é uma reconstrução a partir de imagens, fotografias, mapas.
Mas o fantasma branco que reemerge do nevoeiro e conduz verdadeiramente a narrativa é a sua irmã, o primeiro bebé que a mãe teve e que apenas viveu duas horas. A criança cuja sobrevivência poderia significar a não-existência da autora. E é em torno do luto dessa irmã nunca conhecida, «uma menina com um rosto tão branco como um bolo de arroz em forma de meia-lua» (p. 19), que a autora une os vários símbolos da narrativa, quase todos ligados à morte (e por conseguinte à vida): a neve; o recém-nascido branco (e o branco é aqui não só a pureza mas a ausência de cor de uma morte definitiva) envolto em panos brancos; o leite materno que a mãe expulsará do peito; ossos desfeitos em pó; magnólias que significam revivificação (as flores brancas são a morte ou a vida?); cubos de açúcar; um grou; estrelas; nuvens; nevoeiro; fantasmas; a Lua; os primeiros dentes de um bebé; arroz branco cozido e que representa uma oferenda; um sudário branco; vestes brancas de luto queimadas e dissipadas em fumo branco; papel branco…
Han Kang nasceu na Coreia do Sul e venceu o Prémio Man Booker International em 2016 com A Vegetariana. Depois de Atos Humanos este é o terceiro livro da autora publicado entre nós pela Dom Quixote, e resulta de uma residência literária em Varsóvia.
Um livro experimental, parcialmente autobiográfico, poético, em jeito de glossário, de pensamentos soltos sobre a vida, a morte, a beleza. Uma nota final para a própria capa do livro, belíssima, inevitavelmente branca, com letras prateadas, e um marcador a preto e branco…
Uma prosa enfeitiçante e um livro cativante que prende rapidamente o leitor, apesar da ambiguidade próxima de um ambiente fantástico que por vezes toca o grotesco mas sempre sem perder o lirismo.
Depois do êxito de A Vegetariana, vencedor do Man Booker International Prize de 2016, a Dom Quixote publica o segundo romance da autora sul-coreana Han Kang, professora de Escrita Criativa no Instituto de Artes de Seul, publicado originalmente em coreano em 2014 e traduzido a partir do inglês numa tradução atenta e cuidada.
No primeiro capítulo narra-se a história de um rapaz que procura o amigo, sendo esta voz narrativa bastante peculiar pois é narrada na segunda pessoa, como se o narrador falasse com a própria personagem: « – Parece que vai chover – murmuras para ti próprio.» (p. 13)
Esta segunda pessoa que parece dirigir-se ao leitor, identificando-o com o rapaz, marca o tom desde a primeira linha atrás citada, e apesar da ambiguidade e dos contornos incertos do que se descreve incita a uma leitura implícita da obra como um retrato político de uma realidade traumática vivida na Coreia do Sul, nos anos 1980, que resultou num dos piores massacres da história do país.
No segundo capítulo, encontraremos «O amigo do rapaz» e perceberemos que ele está morto, contando-nos a sua perspectiva do desfecho do massacre, primeiro como cadáver e depois como fantasma.
Neste livro narra-se, primeiro com ambiguidade, mas depois sem rodeios e cada vez com mais precisão, a brutalidade da repressão e da censura, num momento particularmente delicado na história da Coreia do Sul, quando o país vive sob a lei marcial e depois Park Chung-hee é assassinado pelo próprio chefe dos seus serviços de segurança, apenas para suceder ao poder outro militar autocrata.
Para narrar o inacreditável mas verídico massacre de quando em 1980 os estudantes se revoltaram contra o encerramento das universidades e a falta da liberdade de expressão, a autora Han Kang opta por filtrar os acontecimentos de forma intimista e pessoal, num tempo narrativo em que o passado se intromete recorrentemente no presente, a lembrar que a voz da história não dá descanso.
Depois do êxito de A Vegetariana, vencedor do Man Booker International Prize de 2016, a Dom Quixote publica o segundo romance da autora sul-coreana Han Kang, professora de Escrita Criativa no Instituto de Artes de Seul, publicado originalmente em coreano em 2014 e traduzido a partir do inglês numa tradução atenta e cuidada.
No primeiro capítulo narra-se a história de um rapaz que procura o amigo, sendo esta voz narrativa bastante peculiar pois é narrada na segunda pessoa, como se o narrador falasse com a própria personagem: « – Parece que vai chover – murmuras para ti próprio.» (p. 13)
Esta segunda pessoa que parece dirigir-se ao leitor, identificando-o com o rapaz, marca o tom desde a primeira linha atrás citada, e apesar da ambiguidade e dos contornos incertos do que se descreve incita a uma leitura implícita da obra como um retrato político de uma realidade traumática vivida na Coreia do Sul, nos anos 1980, que resultou num dos piores massacres da história do país.
No segundo capítulo, encontraremos «O amigo do rapaz» e perceberemos que ele está morto, contando-nos a sua perspectiva do desfecho do massacre, primeiro como cadáver e depois como fantasma.
Neste livro narra-se, primeiro com ambiguidade, mas depois sem rodeios e cada vez com mais precisão, a brutalidade da repressão e da censura, num momento particularmente delicado na história da Coreia do Sul, quando o país vive sob a lei marcial e depois Park Chung-hee é assassinado pelo próprio chefe dos seus serviços de segurança, apenas para suceder ao poder outro militar autocrata.
Para narrar o inacreditável mas verídico massacre de quando em 1980 os estudantes se revoltaram contra o encerramento das universidades e a falta da liberdade de expressão, a autora Han Kang opta por filtrar os acontecimentos de forma intimista e pessoal, num tempo narrativo em que o passado se intromete recorrentemente no presente, a lembrar que a voz da história não dá descanso.
O livro da autora sul-coreana Han Kang venceu o Prémio Man Booker International deste ano, apesar de ter sido publicado na Coreia do Sul em 2007. A tradução é que apenas chegou este ano ao público internacional graças a uma jovem que basicamente aprendeu coreano para conseguir traduzir o livro e só pelas primeiras 10 páginas a publicação do livro foi comprada por uma editora. Para minha grande surpresa, descobri ainda que existe um filme coreado baseado no livro lançado no ano de 2009 e que chegou ao Festival de Sundance em 2010. A autora tem ainda outra novela adaptada ao cinema, tendo escrito contos e dois romances antes de
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