Atlas Histórico da Escrita, de Marco Neves, é o primeiro volume na colecção de Atlas da editora Guerra e Paz assinado pela pena de um autor português. Um livro tão ambicioso quanto acessível que toca a escrita, de diversas formas, nas suas várias manifestações, ao longo dos últimos cinco milénios. Um guia tão lúdico quanto didáctico em que é palpável o prazer que o próprio autor terá sentido nesta expedição arqueológica. Um atlas absolutamente inédito, baseado numa rigorosa investigação, de escrita fácil e ligeira, onde há até espaço para brincar e piscar o olho ao leitor: “Passamos o dia a ler e a escrever – e a queixarmo‑nos da língua. A escrita também permitiu desenvolver uma relação neurótica com a linguagem, que já se notava na velha Suméria, em que os escribas se queixavam dos jovens, esses malandros a maltratar a língua.” (p. 7) Ver artigo
Desengane-se quem achar que este enlouquece significa perder a sanidade mental, pois a forma verbal enlouquece, como se pode perceber nas epígrafes referentes à colecção da editora designada Livros Vermelhos, pretende dar que pensar e, acima de tudo, recordar ao ser humano que a vida não se esgota num vírus, como se tem assistido ao longo da História. O autor começa portanto por lembrar as epidemias surgidas ainda no seu tempo de vida. E enfatiza como o medo, e o empolamento dos meios de comunicação, podem ser a pior epidemia. Medo esse que também acarreta, todavia, consequências positivas, como o cessar-fogo no Iémen, o confinamento do Hezbollah ou afastar o Daesh da Europa de volta às suas cavernas. Porque a covid tornou-se um denominador comum enquanto o maior inimigo da Humanidade. E porque uma epidemia, palavra grega que significa «sobre o povo», pode ser, acima de tudo, «um fenómeno social que tem alguns aspectos médicos» (p. 14).
Afirma o autor que «nunca as coisas foram tão longe». Até porque o próprio poder está «desorientado, sem saber a que santo pedir» (p. 20), pelo que nos viramos para os médicos e virologistas como salva-vidas, fazendo as vezes dos comentadores políticos. Mas a “verdade científica”, a que nós adoramos nos entregar, não é mais do que um “erro rectificado”» (p. 23), pelo que, como se tem visto, a cada dia que passa sai uma informação que contradiz a declaração do dia anterior. E, paradoxalmente, nunca a Humanidade foi tão néscia, ao ponto de querer acreditar na «ideia de que o vírus não é totalmente mau, que tem uma certa virtude oculta, e que, participando nesta “guerra”, até temos motivos para nos alegrar» (p. 36)… Como se percebe nesta passagem, a ironia do autor é bastante premente, ainda mais se tivermos em conta o contexto de declarações como esta que reportam à cidade de Paris aquando da entrada das tropas alemãs em 1940.
O livro está bastante colado à realidade francesa, ou não fosse Bernard-Henri Lévy também um cronista, mas isso não retira qualquer mérito. Porque o autor é também epistemólogo de formação, entrou na filosofia pela porta da história das ciências e é autor de um estudo de mestrado consagrado à história da medicina, pelo que está bastante bem posicionado para reflectir de forma abrangente e crítica sobre a(s) crise(s) desencadeada(s) pela irrupção do coronavírus. Concluímos com as palavras do autor quando contesta os que acreditam que o coronavírus «fala connosco», «secretamente imbuído (…) de uma parte do espírito do mundo, e, portanto, de uma missão»: «Como se um vírus pensasse! Como se um vírus soubesse! Como se um vírus quisesse! Como se um vírus vivesse!» (p. 38-39).
Em todo o caso, o plano inicial foi gorado duplamente. Não alternei os volumes com outras leituras, nem sequer vi a série, acabando por arranjar forma de arrumar as personagens principais na minha cabeça, dando-lhes uma cara e um corpo. Quanto às outras personagens e figurantes tal já não foi possível nesta extensa galeria – estamos a falar de um romance que possui mais de 500 personagens. O livro, apesar do medo que se possa sentir inicialmente, é de leitura fácil e, à parte alguns ensaios históricos com que o autor vai pontuando a narrativa (nas várias edições as últimas cerca de 50 páginas foram inclusivamente retiradas até que a mulher Sofia decidiu incluí-las, tal como o marido quereria), vamos deslizando velozmente pela narrativa (li o livro em pouco mais de duas semanas), alternando entre a aristocracia russa, nomeadamente em torno de 4 famílias, e os episódios de guerra em que Napoleão invade a Rússia, chegando até uma Moscovo que se vê praticamente consumida pelo fogo. Essa é aliás a grande mensagem do livro: de como um Napoleão, ao princípio descrito com traços simpáticos, foi uma fraude provocada por acasos que acabaram por ditar a história dos povos da Europa; de como a guerra é uma grande inutilidade, como se pode ver no desfecho da ocupação francesa da Rússia; e de como Tolstói se afirma como um grande revisionista da História, pois, segundo ele, os historiadores erraram completamente nos seus registos oficiais (e Tolstói estudou a fundo diversos documentos): «Toda esta contradição estranha e incompreensível entre o facto e a descrição da história apenas acontece porque os historiadores que escreveram sobre este acontecimento nos contam a história dos belos sentimentos e das palavras de generais vários, e não a história dos acontecimentos.» (pág. 205, IV volume).
A certa altura, conforme nos aproximamos do final do livro, percebemos claramente que as personagens principais, Pierre, Natasha, Mária, se reúnem em torno de uma figura central, o príncipe Andrei. A personagem de Natasha foi das que mais me tocou, além da de Pierre, tendo chegado a levar a peito a sua dor depois da asneira que cometeu com Anatole, e foi com prazer que depois descobri que o autor se inspirou numa personagem real – a sua cunhada.
Sente-se também aqui o «exaltado misticismo» de Tolstói nomeadamente na personagem de Pierre que chega a ingressar na maçonaria mas é nos padecimentos sofridos na guerra e enquanto prisioneiro que encontra a verdadeira espiritualidade, ao ponto de se sentir um homem feliz em detrimento, ou epor causa, das adversidades que vivencia e que ele próprio padece.
Já agora, para se saber mais sobre Tolstói, de forma mais ligeira, sugiro a leitura de A última estação, de Jay Parini, também publicado pela Editorial Presença, que deu depois origem a um filme com Helen Mirren e que retrata a vida e o casamento do autor e da mulher Sofia.
Neste link, apesar de não ter sido esta a edição que li, podem encontrar alguns pormenores interessantes sobre a obra em 10 pontos.
http://www.saidadeemergencia.com/editorial/10-coisas-que-precisa-de-saber-sobre-guerra-e-paz/ Ver artigo
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