Yoga, de Emmanuel Carrère, com tradução de Sandra Silva, publicado pela Quetzal, contém uma advertência inicial: este não é um manual prático de yoga, nem um livro de autoajuda bem-intencionado. A estranha natureza deste livro, cujos temas são particularmente difíceis, fica clara logo nas primeiras linhas: “Como tenho de começar por algum lado o relato dos quatro anos ao longo dos quais tentei escrever um livrinho sorridente e subtil sobre yoga, enfrentei coisas tão pouco sorridentes e subtis como o terrorismo jiadista e a crise dos refugiados, mergulhei numa tal depressão melancólica que tive de ficar internado quatro meses no hospital (…) e, para rematar, perdi o meu editor, que pela primeira vez em trinta e cinco anos não lerá um livro meu” (p. 11). Ver artigo
O Reino, de Emmanuel Carrère, publicado pelas Edições Tinta-da-china, «conta a história dos primórdios do cristianismo e de como dois homens, Paulo de Tarso e Lucas, transformaram uma pequena seita de judeus, liderados pelo seu pregador crucificado»; religião essa que em três séculos provocou a queda do Império Romano e conquistou o mundo. É um livro portentoso, com mais de 400 páginas, em que nas primeiras 100 páginas o autor nos faz um relato de como 25 anos antes passou por uma profunda crise existencial, tornando-se um católico praticante, cristão fervoroso, com quem 3 anos depois deixou de se identificar. Assumindo-se agora como um céptico, agnóstico, «nem suficientemente religioso para ser ateu» (p. 103), o autor revisita o seu arquivo, como é o caso de 18 cadernos em que comentava diariamente passagens do Evangelho de S. João. Na terceira parte do livro, o autor mergulha então no relato das vidas do apóstolo e do evangelista, sempre baseado na leitura da Bíblia, das cartas de S. Paulo, e vários outros textos religiosos. Porque ao autor interessa esmiuçar a verdade, tentando compreender o que está por trás de testemunhos nem sempre claros e de passagens insuficientes, O Reino é uma narrativa extremamente pessoal (o autor despe realmente a alma), e uma reconstrução histórica do Cristianismo nos seus primórdios, tacteando cuidadosamente entre o «certo, provável, possível e não impossível» (p. 331), demonstrando-nos como a religião não nasceu com a vinda do Messias – na verdade, quase nem deram por ele na altura –, mas com discípulos de carne e osso: Paulo de Tarso é um caso paradigmático, pois não chegou a conhecer o Cristo em vida. A perspectiva crítica de um conhecedor não crente do Evangelho– «passei dois anos da minha vida a comentar João, dois a traduzir Marcos, sete a escrever este livro sobre Lucas» (p. 413) –, dá-lhe espaço para colocar em causa aspectos de uma religião baseada numa inversão radical de valores (os ricos serão os pobres, os últimos serão os primeiros), cujos princípios se parecem ter perdido com o tempo: «A Igreja já não domina os assuntos; cumpriu obviamente o seu tempo e é difícil dizer se a sua idade avançada, da qual somos testemunhas bastante indiferentes, tende sobretudo para a senilidade agressiva ou para a sabedoria luminosa que lhe desejamos, pelo menos eu desejo, quando pensamos na nossa própria velhice.» (p. 419) Ver artigo
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