Do escritor israelita David Grossman, autor de Um Cavalo Entra num Bar, vencedor do Prémio Internacional Man Booker em 2017, publicado pela Dom Quixote e já aqui apresentado, chega agora este livro de não-ficção em que se revisita e reinterpreta o mito bíblico de Sansão. Explica o autor no prólogo que «Há poucas histórias na Bíblia com tanto drama e ação, tanto fogo e artifício narrativo e emoção pura, como os que encontramos no conto de Sansão» (pág. 8).
David Grossman analisa a par e passo, isto é, frase a frase, o mito bíblico desse jovem gigante, musculado e de longos cabelos entrançados, numa análise que transcende o literário, uma vez que cruza História com emoção. O autor tão depressa nos contextualiza historica e culturalmente no fim do século XII, princípio do XI a. c., para nos conduzir através deste mito, como logo a seguir argumenta logicamente que a colmeia que surge no esqueleto do leão morto por Sansão teria de ter sido um ano depois, uma vez que as abelhas cujo olfacto é tão sensível nunca se aproximariam de uma carcaça… Mas nunca perde de vista o lado humano de Sansão, como se entrássemos afinal no campo do romance, despindo-o da figura insonsa de herói e revelando-o como um homem solitário e torturado, apresentando um jovem que afinal não era apenas musculado e incrivelmente forte, mas tinha alma de poeta e vivia um enigma inconciliável, entre cumprir o seu papel como salvador do povo israelita ou procurar viver com livre-arbítrio, podendo inclusivamente escolher apaixonar-se como qualquer homem vulgar. E neste caso, como qualquer outro homem, pela mulher errada: Dalila.
O autor ainda que trate um assunto sério, de forma profunda e bem fundamentada, mantém aqui uma ironia e um humor que lhe é característico, e que definiu aliás a sua obra já referida, Um Cavalo Entra num Bar, título tomado do início de uma série de piadas e que versa sobre um performer de stand-up comedy. Note-se a seguinte passagem: «Mas qualquer pessoa familiarizada com a semiótica da narração de histórias bíblicas sabe que a simples menção de uma mulher estéril quase sempre pressagia um nascimento de grande importância.» (p. 10)
Aconselha-se a começar a leitura do livro pelo fim, pois a editora Elsinore teve o bom-senso de incluir um Anexo com as passagens bíblicas referentes a Sansão, contidas nos capítulos 13 a 16 do Livro dos Juízes.
O Mel do Leão – O Mito de Sansão ficou disponível ao público nas livrarias portuguesas esta segunda-feira, dia 21, numa tradução e edição da Elsinore e augura uma série de lançamentos promissores. Ver artigo
Se a metáfora de “a vida é um palco” já se torna batida, aqui a vida é uma noite de stand-up comedy.
Num livro talvez desconcertante ao início, o leitor levará algum tempo a familiarizar-se com uma narrativa que discorre na primeira pessoa, durante uma performance, pontuada por analepses, em que se alterna ainda entre o discurso do artista, a descrição das acções que se sucedem ininterruptamente e o pensamento, aliado ao seu rememorar, de Ashai Lazar, o protagonista. A própria vida é aqui vista e repensada como uma performance, em que os nossos actos podem voltar no futuro para nos confrontar ou, como acontece a certa altura com o artista durante a sua performance, há a franca possibilidade de darmos bofetadas em nós próprios. Aquilo que parece um espectáculo sem nexo, quando ouvimos um artista em palco que tanto pretende fazer rir o público, como de repente se esquece e se põe a relembrar e recontar a sua vida, pode ainda ser interpretado como uma alegoria dos tempos actuais, em que tudo aquilo que fazemos é colocado em foco, como se estivéssemos ou nos imaginássemos perante um palco (com um certo egotismo e narcisismo, como nas selfies que inundam as redes sociais), dignos da atenção do mundo inteiro pelos gestos mais banais.
O artista pretende gozar com tudo e o público continua a rir, mesmo quando se sente incerto ou mesmo incomodado pelas piadas que versam inclusivamente a doença ou a morte, como se na vida tudo fosse risível ou talvez seja o riso a única salvação e a melhor forma de relativizar. Mas o humorista também corre naturalmente o risco de se tornar anedota…
A dada altura, Ashai Lazar, o protagonista, especialmente convidado pelo artista a comparecer, até porque ele é um juiz (e quem melhor do que um juiz para julgar a sua performance?) sente-se mesmo tocado por esta performance de stand-up comedy como há muito tempo a arte não o fazia sentir: «Como é que a sua verborreia histérica e as suas piadas irritantes tiveram sobre mim o mesmo efeito que a luz estroboscópica sobre os epilépticos, precipitando-me mais e mais para dentro de mim, para a minha vida?/E como é que ele, no seu estado, fez por mim aquilo que nenhum dos livros que li, dos filmes que vi ou das consolações que os meus amigos e parentes me ofereceram fizeram nos três últimos anos?» (p. 87)
O texto ganha assim laivos metaficcionais, na medida em que se pensa a si próprio e reflecte sobre a literatura. É curioso aliás que este juiz ainda por cima seja autor de textos ou sentenças incisivas e mais ou menos cuidadas literariamente: «Pensei nas minhas sentenças, cuja mínima frase polia e limava e nas quais de vez em quando – de uma forma obviamente discreta e sem pretensões – introduzia alguma metáfora florida, citação de um poema de Pessoa, Kavafy ou Nathan Zach, ou até alguma imagem poética da minha autoria.» (p. 75) Ver artigo
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