Se ao ler este livro se sentir inicialmente perdido como um Joker num baralho de cartas, não estranhe, pois essa pode até ser a melhor forma de desvendar o mistério daquele que será, certamente, um dos melhores romances publicados por cá este ano.
Tyll – O Rei, o Cozinheiro e o Bobo é apresentado como uma invulgar fusão entre a ficção histórica, o picaresco e o realismo mágico. De realismo mágico nada tem, mas perpassa nestas páginas um sentimento de maravilhoso que condiz com a época retratada, quando se julgavam bruxas em tribunal, e se acreditava que as mandrágoras nasciam do sémen de enforcados e choravam como bebés quando arrancadas da terra, e que todas as doenças se podiam curar com sangue de dragão, capazes de dormitar durante 17.000 anos perfeitamente camuflados pela paisagem que os rodeia.
O encantamento deste livro que revivifica Tyll, um bobo, lenda do folclore medieval alemão, é a mestria com que Daniel Kehlmann usa essa personagem, um dos loucos mais ilustres da tradição literária europeia, como forma de abordar o cenário da Guerra dos Trinta Anos, acontecimento que, no século XVII, marcou a Alemanha – e toda a Europa, até porque muitos países e suas respectivas línguas davam os primeiros passos. Mas mais verdadeiramente central a estas cerca de 300 páginas de puro deleite narrativo é a forma como Tyll, ao jeito da carta do Louco no Tarot, como a personagem sem lugar certo, expõe a vacuidade da guerra, ainda que os seus efeitos, como a fome e a doença, sejam devastadores. Os próprios capítulos do livro sucedem-se sem ser por ordem cronológica: a um Tyll adulto pode seguir-se um Tyll criança. Irreverente, criativo, inquieto, o bobo é o único a quem é permitido fazer piadas de tudo, muitas vezes dizendo simplesmente aquilo que pensa, e pôr a nu a ignorância daqueles que governam, ou se perdem em jogos de poder pelo trono, sendo que o rei nunca sabe se o há-de castigar ou louvar pela sua sinceridade mordaz: «aos bufões é permitida liberdade total. Se eu não chamar estúpida à majestade, quem irá fazê-lo?» (p. 136).
, e esperando que ninguém o leve verdadeiramente a sério. E a condizer com a sátira temos diálogos hilariantes, com momentos de humor «ao estilo dos Monty Python». Até quando na própria narrativa se brinca com o livro que temos em mãos: «Não pôde deixar de sorrir. Um rei sem reino no meio da tempestade, sozinho com o seu bobo – uma coisa assim nunca existira numa peça, era demasiado ridículo.» (p. 207) Ver artigo
Enquanto não publico o texto da recensão a sair terça-feira, deixo-vos a sinopse deste fantástico livro recentemente publicado pela Bertrand Editora: Ver artigo
Este pequeno livro de bolso da Bertrand Editora começa como um trabalho de metaficção, em que um argumentista, instalado numa casa de férias nos Alpes com a mulher e a filha de 4 anos, tenta escrever o argumento da sequela do seu filme de sucesso. Mas se de início a narrativa é perpassada por uma escrita que se pensa a si própria e onde não faltam referências a uma linguagem cinematográfica, com alguns fade in e flashback, a história começa rapidamente a transformar-se em mais do que a tentativa de escrita de um argumento muito imberbe, pois assemelha-se a um diário, organizado com entradas por datas, entre 2 a 7 de Dezembro de um ano qualquer. Pode até bem ser o caderno inacabado a que o escritor se refere, onde escreve os seus pensamentos, intercalado com as cenas e diálogos do argumento, e descreve alguém que parece transpôr o limiar da loucura.
Se de início o narrador, sempre sem nome, começa por dar conta de como o seu casamento parece estar em crise, com discussões constantes, e ele próprio parecer um pouco alienado e preferir isolar-se no seu próprio mundo, enquanto tenta dar mostras de progresso no trabalho, que na verdade pouco evolui, a partir de metade do livro a narrativa ganha contornos de um thriller psicológico. Curiosamente, assim que se sai do cenário da casa e o narrador vai até à aldeia para se reabastecer de provisões, uma mulher avisa-o: «Vá-se embora depressa.»
A partir daí o livro descende numa espiral de distorção do real. Os estranhos sonhos e pesadelos são recorrentes. A casa ganha quartos novos e outros há que mudam de lugar. No seu caderno aparecem palavras que ele não escreveu. As leis da geometria são abolidas. Os reflexos nas janelas surgem distorcidos em relação à realidade espelhada, pois não reflectem o escritor na sala. Fotografias aparecem e desaparecem das paredes. Outra pessoa parece andar pela casa. Ou talvez a dissociação entre escritor e pessoa seja tão forte que ele se começa a projectar a si próprio. E é pela escrita que ele tenta salvar-se e reencontrar-se:
«Escrevo muito depressa, anoto o que se passou. Tenho de escrever isso para não enlouquecer. Ou para o caso de qualquer coisa me acontecer.» (p. 63)
Daniel Kehlmann, alemão, é um dos escritores favoritos de Ian McEwan e de Jonathan Franzen. O livro está a ser adaptado ao cinema, numa produção e interpretação de Kevin Bacon. A sua obra A Medida do Mundo é um dos mais conhecidos bestseller da literatura alemã, traduzido para mais de quarenta línguas, e igualmente adaptado ao cinema.
Esta obra de Daniel Kehlmann foi adaptado ao cinema no ano de 2020 com o título idêntico, You Should Have Left, e conta com a interpretação de Kevin Bacon e de Amanda Seyfried. Ver artigo
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