Cidade da Vitória é o mais recente (e muito antecipado) romance de Salman Rushdie, autor publicado pela Dom Quixote – um dos meus autores favoritos, de longa data, e que me levou também, a par de García Márquez, a explorar os meandros do realismo mágico. Publicado em Portugal em Outubro, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, este é um romance que assenta no poder encantatório das histórias e o retorno à mescla entre o realismo e o maravilhoso, que caracteriza as melhores obras de Rushdie. O que é, entenda-se, diferente da noção de realismo mágico. Para que fique claro, o realismo mágico obedece a uma série de princípios, e nem todos os romances onde existe uma irrupção do maravilhoso devem ser definidos como romances pertencentes ao filão do realismo mágico, com a sua preferência notória pela metamorfose e por objetos e pessoas com o poder de levitar. Ver artigo
Quichotte, de Salman Rushdie, publicado pela Dom Quixote, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, é uma homenagem ao clássico de Cervantes, hoje considerado como um romance pioneiro, pós-moderno até, pela sua metaficcionalidade, isto é, a forma como coloca em causa a sua própria natureza enquanto trabalho de ficção.
Quichotte (note-se a grafia ligeiramente diferente do nome), é a história de Sam DuChamp, autor medíocre, de origem indiana, de livros de espionagem, usualmente designado como Irmão. Bem… na verdade, Quichotte conta a história de Ismail Smile, um vendedor ambulante obcecado por televisão que se apaixona por uma apresentadora, de seu nome Salma R. (note-se a sonoridade próxima ao nome do autor), e que percorre os Estados Unidos, no seu Chevrolet Cruze, na companhia de Sancho, o filho que ele imaginou tão fortemente ao ponto de este surgir como uma imagem a preto e branco. Esta é também a história de Sancho, um jovem adolescente que se materializa de um momento para o outro munido do conhecimento que é também o do seu criador, Quichotte, e que agudiza de tal forma o seu desejo de ser um “menino de verdade” que acaba mesmo por se transformar num – e também Sancho tem o seu próprio grilo falante capaz de lhe conceder desejos, como se a fada azul e o grilo da história de Pinóquio se fundissem num só. Mas esta, dizia, é a história de um Quixote moderno: uma desengonçada «figura solitária, permanentemente fora de tom, o avô louco de todos» mas «com uma certa dignidiade», «impecavelmente vestido» e «um vocabulário invejavelmente extenso» (p. 111), que fala por metáforas e tece fantasias na sua cabeça. Bem, nem sempre essas fantasias estão apenas na sua cabeça, como naquela localidade por onde passa em que os habitantes se transformam em mastodontes… Porque conforme este herói pícaro percorre ao volante várias localidades norte-americanas (a cujo nome, se segue sempre o número do total de habitantes, um pouco como as placas que visionamos nos filmes), tece-se uma forte crítica a uma nação à beira do colapso, tendo Quichotte, por vezes, que fugir das localidades a que acaba de chegar. Porque Quichotte é também a história de um homem perseguido pela sua cor de pele, configurando uma forte crítica ao racismo que fervilha nos E.U.A., onde as pessoas mais depressa acreditam na ficção do que na realidade, e tudo serve como escape: a televisão; as mentiras que preferem alimentar; as drogas que decidem tomar para fugir a si próprias.
Quichotte é a autobiografia delirantemente ficcionada da vida de um escritor exilado, meio britânico meio indiano, num país onde ainda se consegue sentir um estranho, que conta a sua história e as suas desventuras. Quer dizer… Quichotte é um palimpsesto onde ficção e realidade, fantasia e crítica, sátira e cultura popular, se fundem, num jogo delirante pautado apenas pela lógica da efabulação onde tão depressa cruza referências da actualidade, como Candy Crush Saga, The Real Housewives of Atlanta, Star Trek, American Idol, The Voice, etc etc etc…
Este livro de quase 500 páginas é um pujante regresso às grandes obras de Rushdie, justamente considerado pela Time um dos melhores livros do ano e finalista do Man Booker Prize 2019. Mas… se calhar, no fim de tudo, Quichotte nem sequer existe…
Quichotte (note-se a grafia ligeiramente diferente do nome), é a história de Sam DuChamp, autor medíocre, de origem indiana, de livros de espionagem, usualmente designado como Irmão. Bem… na verdade, Quichotte conta a história de Ismail Smile, um vendedor ambulante obcecado por televisão que se apaixona por uma apresentadora, de seu nome Salma R. (note-se a sonoridade próxima ao nome do autor), e que percorre os Estados Unidos, no seu Chevrolet Cruze, na companhia de Sancho, o filho que ele imaginou tão fortemente ao ponto de este surgir como uma imagem a preto e branco. Esta é também a história de Sancho, um jovem adolescente que se materializa de um momento para o outro munido do conhecimento que é também o do seu criador, Quichotte, e que agudiza de tal forma o seu desejo de ser um “menino de verdade” que acaba mesmo por se transformar num – e também Sancho tem o seu próprio grilo falante capaz de lhe conceder desejos, como se a fada azul e o grilo da história de Pinóquio se fundissem num só. Mas esta, dizia, é a história de um Quixote moderno: uma desengonçada «figura solitária, permanentemente fora de tom, o avô louco de todos» mas «com uma certa dignidiade», «impecavelmente vestido» e «um vocabulário invejavelmente extenso» (p. 111), que fala por metáforas e tece fantasias na sua cabeça. Bem, nem sempre essas fantasias estão apenas na sua cabeça, como naquela localidade por onde passa em que os habitantes se transformam em mastodontes… Porque conforme este herói pícaro percorre ao volante várias localidades norte-americanas (a cujo nome, se segue sempre o número do total de habitantes, um pouco como as placas que visionamos nos filmes), tece-se uma forte crítica a uma nação à beira do colapso, tendo Quichotte, por vezes, que fugir das localidades a que acaba de chegar. Porque Quichotte é também a história de um homem perseguido pela sua cor de pele, configurando uma forte crítica ao racismo que fervilha nos E.U.A., onde as pessoas mais depressa acreditam na ficção do que na realidade, e tudo serve como escape: a televisão; as mentiras que preferem alimentar; as drogas que decidem tomar para fugir a si próprias.
Quichotte é a autobiografia delirantemente ficcionada da vida de um escritor exilado, meio britânico meio indiano, num país onde ainda se consegue sentir um estranho, que conta a sua história e as suas desventuras. Quer dizer… Quichotte é um palimpsesto onde ficção e realidade, fantasia e crítica, sátira e cultura popular, se fundem, num jogo delirante pautado apenas pela lógica da efabulação onde tão depressa cruza referências da actualidade, como Candy Crush Saga, The Real Housewives of Atlanta, Star Trek, American Idol, The Voice, etc etc etc…
Este livro de quase 500 páginas é um pujante regresso às grandes obras de Rushdie, justamente considerado pela Time um dos melhores livros do ano e finalista do Man Booker Prize 2019. Mas… se calhar, no fim de tudo, Quichotte nem sequer existe…
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