Entre vários livros que têm sido publicados ao longo dos últimos meses e que versam a epidemia global do coronavírus – alguns deles aqui apresentados, como Este vírus que nos enlouquece, de Bernard-Henri Lévy, ou Frente ao Contágio, de Paolo Giordano – é seguro afirmar que este A Pandemia que Abalou o Mundo, de Slavoj Žižek, é uma obra que se demarca. Publicado pela Relógio d’Água, que integra ainda no seu catálogo mais de uma dezena de obras deste psicanalista e investigador de Sociologia na Eslovénia, este é um tratado que versa como o mundo pode vir a despertar desta crise.
Slavoj Žižek argumenta que a pandemia tem vindo, sobretudo, a pôr a nu as fragilidades do nosso sistema, apesar de avisos constantes por parte dos cientistas. A Europa aproxima-se assim do que o autor apelida de “tempestade perfeita”, mediante uma combinação improvável de três diferentes circunstâncias: a epidemia do coronavírus no seu impacto directo, com quarentena, doença e morte; o seu impacto económico (num mundo globalizado que depende fortemente de importações e exportações); e a nova explosão de violência na Síria que provocará uma nova vaga inevitável de migrantes refugiados na nossa direcção.
Da mesma forma que o confinamento social levou a que milhares de pessoas encarassem «a suprema contigência e falta de sentido das nossas vidas» (p. 49) quando, de repente, se viram compelidas a colocar em pausa as suas vidas, conforme o mundo inteiro praticamente parou, o autor mostra uma ténue esperança de que possamos afinal aprender algo com esta crise de modo a repensar o nosso modo de vida. Mais do que isso, o autor advoga, e tem sido «amplamento enxovalhado» por isso (p. 79), que esta crise, tão psicológica quanto económica, seja resolvida com uma nova forma de comunismo. Se o confinamento de todo um país consiste na «concretização da aspiração totalitária mais arrojada» (p. 67), medidas como as que Trump tenta impôr – limitando a liberdade do mercado privado de modo a que todas as empresas se centrem na produção de bens que são agora essenciais, como máscaras, kits de testes, ventiladores – podem representar uma esperança e a forma mais inteligente de tentar evitar um desastre que será, sobretudo, financeiro – na medida em que «numa crise somos todos socialistas».
Slavoj Žižek faz uma acutilante análise de como vários países reagiram à epidemia, entre o espectro do «controlo hierárquico quase total ao estilo chinês», que impediu que se difundisse qualquer informação e, por conseguinte, o pânico, e a «abordagem mais relaxada da “imunidade de grupo”», enquanto quase todos os governos se revelam cada vez mais ineficazes de lidar com a situação, incutindo nos seus cidadãos a responsabilidade de se cingirem à quarentena.
«Por conseguinte, não devíamos perder demasiado tempo com meditações espiritualistas New Age sobre a forma como «a crise do vírus vai permitir que nos foquemos naquilo que realmente importa nas nossas vidas». A verdadeira luta será sobre que forma social vai substituir a Nova Ordem Mundial liberal-capitalista» (p. 113) Ver artigo
Este vírus que nos enlouquece, de Bernard-Henri Lévy, chega às livrarias justamente hoje, dia 7 de Julho, com o selo da editora Guerra e Paz.
Desengane-se quem achar que este enlouquece significa perder a sanidade mental, pois a forma verbal enlouquece, como se pode perceber nas epígrafes referentes à colecção da editora designada Livros Vermelhos, pretende dar que pensar e, acima de tudo, recordar ao ser humano que a vida não se esgota num vírus, como se tem assistido ao longo da História. O autor começa portanto por lembrar as epidemias surgidas ainda no seu tempo de vida. E enfatiza como o medo, e o empolamento dos meios de comunicação, podem ser a pior epidemia. Medo esse que também acarreta, todavia, consequências positivas, como o cessar-fogo no Iémen, o confinamento do Hezbollah ou afastar o Daesh da Europa de volta às suas cavernas. Porque a covid tornou-se um denominador comum enquanto o maior inimigo da Humanidade. E porque uma epidemia, palavra grega que significa «sobre o povo», pode ser, acima de tudo, «um fenómeno social que tem alguns aspectos médicos» (p. 14).
Afirma o autor que «nunca as coisas foram tão longe». Até porque o próprio poder está «desorientado, sem saber a que santo pedir» (p. 20), pelo que nos viramos para os médicos e virologistas como salva-vidas, fazendo as vezes dos comentadores políticos. Mas a “verdade científica”, a que nós adoramos nos entregar, não é mais do que um “erro rectificado”» (p. 23), pelo que, como se tem visto, a cada dia que passa sai uma informação que contradiz a declaração do dia anterior. E, paradoxalmente, nunca a Humanidade foi tão néscia, ao ponto de querer acreditar na «ideia de que o vírus não é totalmente mau, que tem uma certa virtude oculta, e que, participando nesta “guerra”, até temos motivos para nos alegrar» (p. 36)… Como se percebe nesta passagem, a ironia do autor é bastante premente, ainda mais se tivermos em conta o contexto de declarações como esta que reportam à cidade de Paris aquando da entrada das tropas alemãs em 1940.
O livro está bastante colado à realidade francesa, ou não fosse Bernard-Henri Lévy também um cronista, mas isso não retira qualquer mérito. Porque o autor é também epistemólogo de formação, entrou na filosofia pela porta da história das ciências e é autor de um estudo de mestrado consagrado à história da medicina, pelo que está bastante bem posicionado para reflectir de forma abrangente e crítica sobre a(s) crise(s) desencadeada(s) pela irrupção do coronavírus. Concluímos com as palavras do autor quando contesta os que acreditam que o coronavírus «fala connosco», «secretamente imbuído (…) de uma parte do espírito do mundo, e, portanto, de uma missão»: «Como se um vírus pensasse! Como se um vírus soubesse! Como se um vírus quisesse! Como se um vírus vivesse!» (p. 38-39). Ver artigo
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