A Suitable Boy estreou muito recentemente na Netflix, uma série de 6 episódios com uma hora cada, realizada por Mira Nair e produzida pela BBC. É aliás a primeira produção da BBC onde não entra um único actor branco. Esta série adapta o livro Um Bom Partido, de Vikram Seth, publicado entre nós pela Editorial Presença em 3 volumes – embora não se trate verdadeiramente de uma trilogia porque, como era muito habitual em tempos, o que aconteceu foi dividirem o livro original em vários na tradução portuguesa, o que até se compreende visto que cada volume tem cerca de 600 páginas. A série de Mira Nair adapta portanto em 6 horas o equivalente a 1800 páginas – falamos de páginas impressas com um tamanho de letra razoável.
Um bom partido, ou mais adequadamente, A suitable boy, de Vikram Seth (um dos nomes mais representativos da literatura pós-colonial) não pode ser confundido com um romance de cordel. Trata-se de um imenso fresco que por vezes me recorda o Em Busca do Tempo Perdido, talvez pela forma como agarra em vários fios narrativos e diversas personagens que depois vai entretecendo em nós mais apertados. Traça-se assim um amplo retrato da Índia pós-independência a partir da história muitas vezes cruzada de 4 famílias. O autor parece focar-se numa média aristocracia mas o quadro que nos apresenta é cativante, bastante realista, até quando trata de devaneios românticos das personagens, cheio de humor (dei várias gargalhadas com certas passagens) e uma fina ironia. Destaca-se a personagem da jovem Lata, que está em idade de ingressar nos estudos universitários ou, segundo a mãe, em idade de ser rapidamente casada com um rapaz que seja um bom partido, até porque desde a morte do pai de Lata, a sra. Rupa Mehra, tem sempre dependido da bondade de estranhos. O problema é que, entretanto, Lata comete o inimaginável… apaixonar-se por um rapaz sem querer saber o seu apelido. O que leva a catástrofes inimagináveis: o rapaz é muçulmano…
Casamentos prometidos e feitos por conveniência; noivas obedientes que nunca conheceram o noivo; mães de 4 filhos que uma vez perdido o marido ficam sem um lar e vivem da caridade da família, alternando o poiso; jovens que apesar da independência da Índia continuam a idolatrar o regime e a cultura britânica; o sistema de castas; os inomináveis; a influência duradoura de Gandhi; a poesia; a literatura; a política; as leis; as sessões do Parlamento; a reencarnação (ou “Que mal é que eu fiz na minha vida passada para merecer isto?”); os banhos no Ganges que apesar da poluição se acredita lavarem os pecados até à sexta geração de descendentes…
Por vezes perdemo-nos nas personagens, mas além de Lata (interpretada pela jovem estreante Tanya Maniktala) há outras que se destacam, como Maan, o jovem playboy de boas famílias (interpretado justamente por uma estrela de Bollywood, Ishaan Khatter) que se perde de amores por uma cantora e cortesã, prostituta nas horas vagas.
A tradução é cuidada e a tradutora Fernanda Pinto Rodrigues premiada, mas é interessante como o romance é fiel ao original e mantém uma profusão de termos indianos, em hindi e urdu, cujo glossário consta logo do início. Não consultei o glossário ao longo da leitura mas os termos na sua generalidade tornam-se familiares e é possível manter o ritmo da leitura sem desfazer da compreensão da mesma.
Deixo como remate a perspectiva de um inglês sobre o país: «Mas, apesar de tudo, é um povo encantador: lisonjeiro pela frente, caluniador pelas costas, alardeador de nomes sonantes para se dar ares, omnisciente, gabarola, rábula, venerador do poder, empata nas estradas, dado a cuspir para o chão… Em tempos, a minha litania contava com mais alguns títulos, mas esqueci-os.» (pág. 508).
Tem havido diversas críticas à série, como o ser uma visão romântica da Índia típica dos britânicos ou todas as personagens falarem inglês – mas ouve-se de facto urdu e hindi, além de que já o livro, na verdade, foi escrito em inglês. É, além disso, um dos romances mais extensos da língua inglesa. Acusa-se ainda Mira Nair de não fazer um bom filme desde o Casamento debaixo de Chuva ou O Bom Nome (2006), igualmente adaptado de um livro, de Jhumpa Lahiri, ou A Feira das Vaidades (2004), com Reese Witherspoon, e que eu particularmente adoro, justamente pela forma como cruzava o classicismo britânico, frio e formal, com o exotismo indiano. Por falar nisso, a banda sonora de Alex Heffes e Anoushka Shankar traz-nos o usual som do sitar. Pode não ser o retrato pós-colonial da Índia que se desejaria, mas não deixa de ser entretenimento deslumbrante e culturalmente rico, ainda que, como sempre, a série não consiga fazer justiça ao livro, cuja trama é tão complexa quanto cativante. Ver artigo
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