Civilizações, de Laurent Binet, publicado pela Quetzal, com tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, apresenta-se, e lê-se, como um romance mas, não fosse a sua capacidade efabulatória, ao recriar a história da Europa, aproxima-se mais de um ensaio pelo registo sóbrio e fatual, com intromissões muito pontuais do narrador. Ver artigo
Publicado na Forma de Vida:
No dia 25 de Fevereiro de 1980, o linguista, filósofo e crítico literário Roland Barthes é vítima de um atropelamento. Morre um mês depois, no seu quarto de hospital, no dia 26 de Março de 1980 — data conforme à realidade —, não em resultado do acidente, mas vítima de um assassinato, desta vez bem sucedido.
Enquanto o título da obra publicada pela Quetzal refere aquilo que seria a mais recente descoberta de Barthes, a sétima função da linguagem, o subtítulo, «Quem matou Roland Barthes?», procura evidenciar a natureza de thriller policial do livro. Contudo, à medida que avançamos na leitura, a narrativa evidencia-se mais como sátira do que como mistério. Laurent Binet caminha numa linha ténue entre o popular e o erudito: se por um lado joga com uma série de códigos e referentes (como no caso da sociedade secreta, as senhas de entrada, os espiões, o sexo), por outro tudo é subvertido por meio da sátira, ainda mais porque a intriga assenta num tema obscuro (intencionalmente?), que parece pouco explicado, ou pelo menos de forma pouco convincente, e move-se entre uma série de referências que só alguns leitores irão captar numa primeira leitura mesmo que desatenta.
Com a primeira frase, «A vida não é um romance» (p. 11), o narrador parece querer demarcar bem a fronteira entre ficção e realidade, se bem que o que acontece aqui, a começar pelo acidente de Barthes nas primeiras páginas, é quase sempre partir do real para efabular, como se comprova na segunda frase: «É pelo menos nisso que gostaríamos de crer.» (p. 11) Logo nas primeiras linhas, a personagem de Roland Barthes é construída de forma não muito simpática, quase cómica, aos olhos do leitor: «Roland Barthes sobe a Rua de Bièvre. O maior crítico literário do século XX tem todas as razões para estar muitíssimo angustiado.» (p. 11) Este registo aparentemente encomiástico é logo a seguir refutado com a asserção: «Morreu-lhe a mãe, com a qual mantinha relações muito proustianas.» (p. 11) Ou quando a personagem considera como no seu curso do Collège de France, «A preparação do romance», falou de tudo durante três anos menos do romance, uma «manobra dilatória para adiar o momento de começar uma obra realmente literária, ou seja, que faça justiça ao escritor hipersensível que dormita nele e que, nisso todos estão de acordo, começou a despontar nos seus Fragmentos de um Discurso Amoroso, que se tornou a bíblia dos que têm menos de vinte e cinco anos» (p. 11).
Laurent Binet terá chocado o meio literário por esta ridicularização do linguista e de outros intelectuais da época, parece-me que mais particularmente no caso de Michel Foucault, mas afirma em entrevistas que procurou menos a caricatura do que aquilo que as personagens terão de genuíno . Binet defende, por exemplo, que as cenas sobre Foucault são geralmente verdadeiras e que aspectos como o seu comportamento em festas, o consumo de drogas, a maneira como deixava de conseguir falar inglês quando bêbado ou estão presentes nas suas biografias ou foram contadas por amigos. Há ainda outros aspectos do livro que, apesar de parecerem pura ficção, são afinal verídicos, como o pai de Julia Kristeva ter pertencido de facto aos serviços secretos búlgaros ou Louis Althusser ter estrangulado a mulher. Quando lado a lado com situações como os dois agentes que andam com guarda-chuvas que deitam veneno, ou sociedades secretas onde há duelos de oratória em que Umberto Eco é uma espécie de campeão, mais conhecido como Grande Protágoras, e em que quem é derrotado nos debates fica sem os genitais ou os dedos, torna-se difícil perceber onde começa a ficção e termina a realidade.
O narrador da obra assume-se sempre na primeira pessoa, com constantes apartes em que interpela directamente o leitor. No primeiro capítulo, enquanto narra os pensamentos que passavam pela mente de Roland Barthes pouco antes do acidente, assegura mesmo o leitor de que tudo o que ficou narrado pode ser comprovado: «As razões que acabo de evocar para explicar a atitude preocupada de Roland Barthes estão todas atestadas pela História, mas apetece-me contar-vos o que de facto se passou.» (p. 12) Não só a voz narratorial partilha da corrente de consciência das personagens, como reclama ainda alguma omnisciência face ao narrado, pois quando se dá o acidente do atropelamento de Barthes, escreve que os transeuntes «não sabem o que acaba de acontecer diante dos seus olhos, e com razão, pois até hoje o mundo ainda o ignora» (p. 13), sendo que este hoje pode ser assumido como a actualidade a partir da qual o narrador/autor enuncia a narrativa, ou, segundo a óptica de Umberto Eco, o leitor lê a obra. Estas prolepses e outros constantes apartes do narrador, onde procura evidenciar ao leitor aquilo que passa despercebido às personagens (como quando estão a ser claramente perseguidas pelo mesmo carro), não se percebe se é decalque de uma linguagem cinematográfica (pois um carro que aparece constantemente em diversas cenas dificilmente passaria despercebido), ou se se trata de uma linguagem metaficcional, em que o narrador interpela directamente o leitor e muitas vezes apela mesmo à sua livre interpretação. São constantes os parênteses como a seguinte passagem:
O comissário instala-se num café, pede uma cerveja, acende um cigarro Gitane e abre Le Roland-Barthes Sans Peine. (Qual café? Os pormenores são importantes para restituir o ambiente, não é? Imagino-o no Sorbon, o bar diante do Champo, o pequeno cinema de arte e de ensaio, ao fundo da Rua des Écoles, mas, de facto, nada sei, vocês podem situá-lo onde quiserem.) (p. 33)
Mas, mais uma vez, parece estar implícito neste tipo de jogo metaficcional que o leitor tenha algum conhecimento do que é aqui narrado, ou, mais simplesmente, neste caso, dos ambientes e cenários em que se localiza a acção.
O comissário Jacques Bayard é incumbido de investigar o caso, sendo que nada justifica que se tenha destacado para tal um investigador, «ainda menos um comissário dos Renseignements Généraux (RG)» (p. 21), pois para a sociedade em geral Roland Barthes resume-se a um indivíduo do sexo masculino, com 64 anos, atropelado por uma carrinha da lavandaria conduzida por um búlgaro. A única particularidade é que a vítima saía de um almoço com François Mitterrand, o candidato socialista à presidência nas eleições a decorrer no ano seguinte. Conforme prossegue o seu inquérito, Jacques Bayard cedo se apercebe de que está a lidar com «matérias obscuras» (p. 28) e «balelas» (p. 36), além de lhe debitarem constantemente nomes que ele não conhece. Chega mesmo a entrar numa livraria mas acaba por desistir e decide procurar alguém que o inteirasse desse círculo restrito de académicos que parecem falar uma lingua própria, um especialista que lhe saiba descodificar as respostas crípticas que recebe, conforme o seu inquérito o leva a cruzar-se com figuras como Tzvetan Todorov, Michel Foucault, Jacques Derrida, Philippe Sollers, Lacan, Julia Kristeva ou Umberto Eco. Esse alguém é Simon Herzog, doutorando e professor de Semiologia, que demonstra ter capacidades dedutoras dignas de Sherlock Holmes, o que lhe irá valer ser requisitado pelo investigador:
a sua maneira de vestir assinala a sua profissão: usa fato, o que denuncia um emprego de funcionário, mas a sua roupa é modesta, o que implica um salário modesto e/ou uma ausência de interesse pela sua aparência, exerce assim uma profissão onde a apresentação não conta, ou conta pouco. Os seus sapatos estão muito coçados, embora tenha vindo de carro, isso significa que não passa o seu tempo numa secretária, mas no terreno. (p. 46)
É irónica a forma como o professor irá revelar a Bayard que afinal a Semiologia tem utilidade prática, ao traçar o seu perfil com uma precisão assustadora. Tal comprova a tese de Herzog de que a Semiologia deve ser aplicada de forma mais lúdica, usando métodos de crítica literária em objectos não-literários, como Barthes o fazia: «Com Barthes, podia-se passar muito tempo a falar de bifes com batatas fritas, do último Citröen, de James Bond» (p. 43). O jovem doutorando irá aliás prosseguir a sua análise de Bayard:
Esteve na guerra da Argélia, casou-se duas vezes, está separado da sua segunda mulher, tem uma filha com menos de 20 anos com a qual as suas relações são difíceis, votou Giscard nas duas voltas da última eleição presidencial e tornará a votar nele no próximo ano, perdeu um colega no exercício das suas funções, talvez por culpa sua, em todo o caso sente-se responsável. (p. 47)
Esta análise terá como desfecho tragicómico a recrutação à força de Simon Herzog para a investigação.
A ironia do narrador (e o óbvio prazer do autor na recriação destas cenas) é patente em diversas passagens, como quando Bayard e Herzog entram numa sauna gay: «A bem dizer, os dois formam um casal assaz credível: o velho entroncado, torso peludo, que mira com um ar inquisidor, e o jovem magricela, glabro, que vai deitando olhares furtivos.» (p. 59) Todavia, é nesse jovem glabro que a narrativa tende a centrar-se, como se fosse ele e não Bayard o protagonista. É nele que o narrador se foca, dando conta do que sente e pensa, e é ele quem sofre um crescendo ao longo da narrativa, pois o Simon do final do livro não é mais o jovem professor do início, e as marcas que lhe ficam da aventura vivida serão inclusivamente físicas. Conforme Bayard diz a Simon, perto do final do livro: «Sem este inquérito, não te terias tornado o que és. (…) Quando te encontrei, eras um ratinho de biblioteca, parecias um imberbe hippie, e vê-te agora: usas um fato de bom corte, encontras umas garotas, és a estrela ascendente do Logos Club…» (p. 443)
Através de referências tão díspares como a música pop da época ou actores de cinema, Laurent Binet faz uma reconstrução de época que não passa apenas pelos meandros da ficção e da linguística, mas também da política e de um modo de estar, num tempo em que as pessoas ainda paravam de fazer o jantar na cozinha para poder ouvir o telejornal. É sintomático o momento em que se noticia a morte de Roland Barthes, episódio esse que constitui todo um capítulo onde se indica inclusive o nome do apresentador e há uma transcrição na íntegra das notícias que foram transmitidas no noticiário da noite de 26 de Março de 1980, com indicação do minuto preciso. Este momento revela-se até um pouco cinematográfico, pela sua simultaneidade, pois enquanto o apresentador passa para as notícias do desporto temos vários parênteses que dão conta de como a notícia é recebida pelas várias personagens que gravitavam em redor do linguista: «Giscard continua a rubricar documentos. Miterrand pega no telefone (…)», «Sollers e Kristeva vão para a mesa. Kristeva faz o gesto de secar uma lágrima e diz: «A vida volta a ser o que era.» Dentro de duas horas, Bayard e Deleuze verão o jogo.» (p. 103)
Perto do final do livro, Simon Herzog dá por si a interrogar-se se não será antes uma personagem de um romance, e a personagem, em vez do narrador, passa a dialogar directamente com o leitor: «Há que lidar com esse romancista hipotético como com Deus: sempre fazer [sic] como se Deus não existisse, pois se Deus existe, é quando muito um mau romancista, que não merece sequer que se o respeite nem que se lhe obedeça.» (p. 465)
Qual era afinal a sétima função da linguagem? Roland Barthes terá deixado nos seus escritos pistas, e há algumas explicações mas, apesar da reviravolta final, onde a podemos ver a ser aplicada com fins políticos — e daí a ligação da política à linguagem, relembrando que a retórica de um debate presidencial ainda é uma arma de sedução e de persuasão —, parece-nos que a sua natureza ou plausibilidade fica pouco fundamentada. O debate entre Mitterrand e Giscard a que Bayard e Herzog assistem na televisão permite-lhes perceber que, fechado o inquérito, a sétima função tornou-se um «segredo de estado», mas não é compreensível de que modo funciona esta técnica uma vez aplicada, apenas que é como uma função performativa que convence qualquer pessoa a fazer o que o interlocutor disser.
Mesmo que possa haver quem defenda que este é um livro para um certo nicho de leitores, e apesar das quase 500 páginas e da profusão de citações e referências literárias, o romance lê-se muito bem, lembrando mesmo, numa acção que se desenrola de modo rápido em capítulos curtos (num total de 99), um mistério à la Dan Brown, onde se cruzam os literários da época (não falta Roman Jakobson), figuras do cinema, da política (algumas ainda actuais, como Le Pen), espiões, a Camorra, referências de música pop da época, uma sociedade secreta que se baseia nos poderes da oratória. Este romance de Laurent Binet daria um bom filme. Não faltam aliás referências ao cinema e cada uma das partes do livro é localizada numa cidade diferente, como Paris, Bolonha, Ithaca, Veneza, Nápoles.
Uma última nota prende-se com a qualidade da tradução e da revisão. É possível detectar várias gralhas, como a supressão de artigos, além de haver erros de pontuação, de marcação do discurso directo, sintaxe muito próxima do francês, e erros de tradução. A editora comunicou já que infelizmente não detectaram a situação a tempo e estão a trabalhar numa revisão profunda para uma posterior edição.
No dia 25 de Fevereiro de 1980, o linguista, filósofo e crítico literário, o estruturalista Roland Barthes é vítima de um atropelamento. Morre um mês depois, no seu quarto de hospital.
Quem matou Roland Barthes na tentativa de se apoderar da sua mais recente descoberta, a sétima função da linguagem?
O comissário Jacques Bayard vai investigar o caso mas cedo se apercebe, conforme o seu inquérito o leva a cruzar-se com figuras como Michel Foucault, Derrida, Julia Kristeva, Umberto Eco, de que se move num círculo restrito e de que precisa alguém que lhe saiba descodificar as suas conversas crípticas e que saiba ler as pessoas. Rapidamente recruta Simon Herzog, um doutorando e professor de Semiologia, com capacidades dedutoras dignas de Sherlock Holmes.
Apesar das quase 500 páginas, da profusão de citações e referências literárias, o romance lê-se muito bem, lembrando mesmo, numa acção que se desenrola de modo rápido e nos capítulos muitas vezes curtos que se sucedem, um mistério à la Dan Brown, onde se cruzam os literários da época (não falta Roman Jakobson), figuras do cinema, espiões, sociedades secretas que se baseiam nos poderes da oratória. Este romance de Laurent Binet – jornalista, escritor, músico, professor de Ciência Política – daria um bom filme. Não faltam aliás referências ao cinema e cada uma das partes do livro é localizada numa cidade diferente, como Paris, Bolonha, Ithaca, Veneza, Nápoles.
Numa «sátira insolente e tão divertida como apaixonante sobre o mundo narcísico dos intelectuais, o poder da palavra, as ilusões da literatura», a literatura cruza-se com a linguística, a política e o sexo, numa série de peripécias que raiam o surreal e onde uma das personagens principais dá por si a interrogar-se constantemente se não será antes uma personagem de um romance, o que explicaria o insólito que testemunha.
E agora vou tentar esticar isto para uma recensão de 10 000 caracteres…
Quem matou Roland Barthes na tentativa de se apoderar da sua mais recente descoberta, a sétima função da linguagem?
O comissário Jacques Bayard vai investigar o caso mas cedo se apercebe, conforme o seu inquérito o leva a cruzar-se com figuras como Michel Foucault, Derrida, Julia Kristeva, Umberto Eco, de que se move num círculo restrito e de que precisa alguém que lhe saiba descodificar as suas conversas crípticas e que saiba ler as pessoas. Rapidamente recruta Simon Herzog, um doutorando e professor de Semiologia, com capacidades dedutoras dignas de Sherlock Holmes.
Apesar das quase 500 páginas, da profusão de citações e referências literárias, o romance lê-se muito bem, lembrando mesmo, numa acção que se desenrola de modo rápido e nos capítulos muitas vezes curtos que se sucedem, um mistério à la Dan Brown, onde se cruzam os literários da época (não falta Roman Jakobson), figuras do cinema, espiões, sociedades secretas que se baseiam nos poderes da oratória. Este romance de Laurent Binet – jornalista, escritor, músico, professor de Ciência Política – daria um bom filme. Não faltam aliás referências ao cinema e cada uma das partes do livro é localizada numa cidade diferente, como Paris, Bolonha, Ithaca, Veneza, Nápoles.
Numa «sátira insolente e tão divertida como apaixonante sobre o mundo narcísico dos intelectuais, o poder da palavra, as ilusões da literatura», a literatura cruza-se com a linguística, a política e o sexo, numa série de peripécias que raiam o surreal e onde uma das personagens principais dá por si a interrogar-se constantemente se não será antes uma personagem de um romance, o que explicaria o insólito que testemunha.
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