Depois de ler com tanto prazer e fascínio Tyll, publicado pela Bertrand Editora, e já aqui apresentado, além de ter descoberto que em 2020 estreou mais um filme baseado numa obra sua, Devias ter-te ido embora, igualmente publicada pela Bertrand, que conta com interpretação de Kevin Bacon, tive de procurar o seu anterior A Medida do Mundo. Bestseller internacional traduzido para mais de quarenta línguas, adaptado ao cinema (alemão), foi traduzido e publicado pela Editorial Presença em 2007. Existe ainda outra obra publicada pelo autor pela Editorial Presença que espero conseguir ler em breve: Fama – Romance em nove histórias.
A Medida do Mundo é um delirante romance (ao jeito de Kehlmann) que pode ser lido, de rajada, como uma fábula do Século das Luzes. Alternando entre os percursos de dois gigantes do Iluminismo alemão, Alexander von Humboldt e Carl Friedrich Gauss, a narração começa quando os dois eminentes sábios se encontram em Berlim, no ano de 1828. Na verdade, a narrativa centra-se mais em Humboldt, aristocrata e asceta, um dos fundadores da moderna geografia graças às suas incansáveis explorações pelo mundo:
«No caminho para Espanha, Humboldt mediu todas as colinas. Subiu a todas as montanhas. (…) Pessoas da terra, que o observaram a fixar o sol através da ocular do sextante, pensaram que ele era um pagão que adorava os astros e apedrejaram-no, de tal modo que foram obrigados a saltar para os cavalos e partir a galope.
(…) Uma colina cuja altitude não era conhecida deixava-o perturbado e inquieto. Uma pessoa não podia seguir sem determinar sempre a própria posição. Não se devia deixar ficar pelo caminho um enigma, por mais pequeno que fosse.» (p. 32-33)
Para Humboldt, cujas indagações o levam até aos confins da América do Sul e pela Rússia quase até à China, tudo no mundo tem de ser compulsivamente medido. A certa altura, o seu colaborador pergunta-lhe mesmo se ele tinha de «ser sempre tão alemão?» (p. 59)
Gauss, o Príncipe das Matemáticas, um génio desde criança, prefere ficar sentado a fazer cálculos. Apesar das diferenças que os separam, têm em comum o anseio de compreender o mundo através de fórmulas verificáveis pela Razão: «Sonda-se o universo com telescópios, conhece-se a formação da Terra, o seu peso e a sua órbita, a velocidade da luz já foi calculada, já se conhecem as correntes do oceano e as condições da vida (…) Já se divisa o fim do caminho, a medição do mundo está quase concluída.» (p. 173)
Uma deliciosa narrativa que com ironia e humor reflecte sobre a fugacidade da vida e o pouco que a ciência pode fazer para a dominar: «A árvore era gigantesca e contava vários séculos de idade. Já ali se encontrava antes dos espanhóis e dos povos antigos. Era anterior a Cristo e a Buda, a Platão e a Tamerlão. Humboldt aproximou o relógio do ouvido e escutou. Da mesma forma que este, com o seu tiquetaque, continha o tempo dentro de si, aquela árvore repelia o tempo: um recife contra o qual se quebrava este fluxo.» (p. 37) Humboldt, aliás, refere mesmo, a certa altura, que escrever um romance «parecia-lhe um caminho magnífico para agarrar a fugacidade do presente.» (p. 23)
Este romance pouco típico e nada convencional liderou durante um ano as tabelas de vendas na Alemanha, destronando Harry Potter e O Código Da Vinci. Traduzido em 34 países, Daniel Kehlmann – um autor jovem, nascido em 1975 – é considerado um renovador da literatura de ficção em língua alemã. Estudou Filosofia e Estudos Alemães, e hoje vive entre Nova Iorque, Berlim e Viena. Ver artigo
Se ao ler este livro se sentir inicialmente perdido como um Joker num baralho de cartas, não estranhe, pois essa pode até ser a melhor forma de desvendar o mistério daquele que será, certamente, um dos melhores romances publicados por cá este ano.
Tyll – O Rei, o Cozinheiro e o Bobo é apresentado como uma invulgar fusão entre a ficção histórica, o picaresco e o realismo mágico. De realismo mágico nada tem, mas perpassa nestas páginas um sentimento de maravilhoso que condiz com a época retratada, quando se julgavam bruxas em tribunal, e se acreditava que as mandrágoras nasciam do sémen de enforcados e choravam como bebés quando arrancadas da terra, e que todas as doenças se podiam curar com sangue de dragão, capazes de dormitar durante 17.000 anos perfeitamente camuflados pela paisagem que os rodeia.
O encantamento deste livro que revivifica Tyll, um bobo, lenda do folclore medieval alemão, é a mestria com que Daniel Kehlmann usa essa personagem, um dos loucos mais ilustres da tradição literária europeia, como forma de abordar o cenário da Guerra dos Trinta Anos, acontecimento que, no século XVII, marcou a Alemanha – e toda a Europa, até porque muitos países e suas respectivas línguas davam os primeiros passos. Mas mais verdadeiramente central a estas cerca de 300 páginas de puro deleite narrativo é a forma como Tyll, ao jeito da carta do Louco no Tarot, como a personagem sem lugar certo, expõe a vacuidade da guerra, ainda que os seus efeitos, como a fome e a doença, sejam devastadores. Os próprios capítulos do livro sucedem-se sem ser por ordem cronológica: a um Tyll adulto pode seguir-se um Tyll criança. Irreverente, criativo, inquieto, o bobo é o único a quem é permitido fazer piadas de tudo, muitas vezes dizendo simplesmente aquilo que pensa, e pôr a nu a ignorância daqueles que governam, ou se perdem em jogos de poder pelo trono, sendo que o rei nunca sabe se o há-de castigar ou louvar pela sua sinceridade mordaz: «aos bufões é permitida liberdade total. Se eu não chamar estúpida à majestade, quem irá fazê-lo?» (p. 136).
, e esperando que ninguém o leve verdadeiramente a sério. E a condizer com a sátira temos diálogos hilariantes, com momentos de humor «ao estilo dos Monty Python». Até quando na própria narrativa se brinca com o livro que temos em mãos: «Não pôde deixar de sorrir. Um rei sem reino no meio da tempestade, sozinho com o seu bobo – uma coisa assim nunca existira numa peça, era demasiado ridículo.» (p. 207) Ver artigo
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016