Se não leu Manual para Mulheres de Limpeza ou Anoitecer no Paraíso, é possível que este livro lhe pareça incompleto, até porque é uma colação de fragmentos. Mas se conhece os contos desta autora nascida no Alasca em 1936 e que alcançou notoriedade 11 anos após a sua morte, com a publicação em 2015 dos seu contos escolhidos em Manual para Mulheres de Limpeza, vai gostar de devassar um pouco da intimidade desta autora, cuja vida, percebe-se aqui, serviu de cenário à sua escrita.
Na primeira parte, que dá nome ao livro, a autora rememora uma série de instantâneos da sua vida, ilustrados com fotos do álbum de família. São breves reminiscências das inúmeras moradas por onde passou, desde a casa onde viveu nos primeiros anos de vida, passando pela sua primeira memória, até à última frase incompleta de um manuscrito inacabado (em consequência da sua morte em 1965), em que relatava uma viagem pelo México com o marido e os filhos. A escrita é clara, contida, como quem põe em ordem o registo de uma vida, ocasionamente iluminada por passagens em que explana a sua paixão pela escrita, como quando visitava com o pai um velhote e colava nas paredes páginas de revistas, dispostas aleatoriamente, como um texto fragmentado que era preciso repôr para dele retirar sentido: «Creio que esta foi a minha primeira lição sobre literatura, sobre as infinitas possibilidades da criatividade.» (p. 31)
A segunda parte do livro consiste numa selecção de cartas – Berlin escrevia imensas –, numa escrita torrentosa, quase desconexa, até porque não se sabe ao que responde a autora, mas também muito autocentrada, pondo a nu uma vida turbulenta que parece nunca lhe pesar. A sua honestidade é desarmante, expondo sem comiseração o esboço de uma autobiografia possível, em que alude ao marido toxicodependente, ao seu alcoolismo, a uma das suas várias passagens pela prisão, depois de passar a infância e juventude em dezenas de casas diferentes, pois mudava constantemente de cidade e até de país, como quando viveu no Chile, e no México já em adulta. As próprias memórias que lhe ficaram, entre uma mãe que mal saía da cama e uma avó que também não era boa dona de casa, não são as mais luminosas: «A casa cheirava a enxofre, roupa suja húmida, cigarros, uísque, insecticida Flit, comida estragada. Não havia frigorífico, só uma geladeira que tinha sempre qualquer coisa podre lá dentro.» (p. 41)
Entre 1971 e 1994, Lucia Berlin trabalhou como professora, mulher de limpeza, telefonista e assistente médica, sem nunca parar de escrever, nomeadamente pelas noites dentro, sentada à mesa da cozinha, depois de deitar os seus 4 filhos. O poeta Edward Dorn, a quem dirige a maioria das suas cartas, foi uma forte influência na sua vida e escrita, e concedeu a Lucia a oportunidade de trabalhar como escritora convidada e depois como professora na unversidade, tendo-se tornado «extraordinariamente popular e acarinhada entre os alunos» (p. 193)
Nesta sua viagem, Lucia Berlin conviveu com inúmeros escritores e artistas, cuja identidade a tradutora Tânia Ganho teve o cuidado de elucidar em diversas notas explicativas que enriquecem o texto. A obra da autora está publicada pela Alfaguara. Ver artigo
À Mesa com os Filósofos é um fascinante tratado de Normand Baillargeon, filósofo canadiano, sobre a aparentemente improvável relação entre a comida e a filosofia, publicado pela Temas e Debates.
Na Grécia Antiga, um banquete ou simpósio reunia amigos para uma «reunião de bebedores», onde o mestre de cerimónias, além das libações, assegurava o encadeamento das conversas. Para o demonstrar, o autor serve-se de um diálogo platónico, em que Platão (428 a.C.) convive com Kant (1724), Khayyãm (1048), poeta persa apreciador de vinho, e Veblen (1857), economista e sociólogo americano. Menos de mil anos mais tarde, Tomás de Aquino disserta sobre a gula como pecado capital, num ambiente monástico em que à mesa não se fala e se faz do jejum um acto virtuoso. Kant, mais tarde, advoga que não se pode celebrar a cozinha como uma experiência estética, pois depende do gosto subjectivo de cada um, enquanto Brillat-Savarin explana que apesar de o prazer de comer satisfazer uma necessidade básica existe uma arte de comer e de degustar. Afinal, «o prazer da mesa é convivial e, como qualquer experiência estética, convida à partilha, à troca e à conversa, nomeadamente sobre os méritos dos pratos» (p. 203).
Este livro, que se pode degustar como um vinho leve, vai encorpando até se tornar adstringente, pois o que começa como uma evocação dos primórdios clássicos da filosofia, em que a comida e especialmente o vinho tiveram um papel central, rapidamente se actualiza numa arguta reflexão sobre a sociedade de hoje… dominada pela ilusória noção de que a enologia é uma ciência, quando as suas conclusões são subjectivas e manipuláveis; em que os supermercados estão concebidos para incitar a comprar tudo aquilo de que não precisamos ou nos é nocivo, pelo que se recomenda ao leitor exercitar o cepticismo e o estoicismo nas compras; em que proliferam programas de culinária e concursos a chef que advogam a cozinha como arte; onde as redes sociais inundadas por fotos de comida disputam protagonismo com corpos secos, cujo músculo, nos homens, ou magreza, nas mulheres, raiam a anorexia atlética; por discussões em torno dos benefícios de ser vegetariano ou vegan; por artigos que se contradizem em torno das propriedades milagrosas ou dietéticas de tal alimento; quais as vantagens e consequências de numa lógica económica se optar entre o locavorismo ou o libertarismo, ou seja, comprar produtos locais e da época num mercado local ou recorrer ao hipermercado onde as estações do ano se suspendem e o mundo inteiro está ao alcance da nossa barriga? Ver artigo
Há livros que inexplicavelmente nos atraem, ou pela capa ou pela ressonância do título. O Evangelho das Enguias, de Patrik Svensson, publicado pela Objectiva, combina o simbolismo da capa com o misticismo do título, onde conflui ainda o próprio mistério que aqui se narra, sobre um animal que se tornou, em si, uma metáfora. Tal como este tratado sobre a vida da enguia, com mais perguntas do que respostas, é também um tratado sobre a vida humana.
Em capítulos onde a história pessoal do autor, nomeadamente os momentos da sua infância em que o pai o ensinava a pescar enguias, com a própria história da enguia, de Aristóteles a Freud, com especial destaque para Johannes Schmidt, um biólogo marinho que seguiu o percurso migratório das enguias até ao Mar dos Sargaços, a narrativa serpenteia num crescendo subtil, cruzando as mais diversas áreas: da sexualidade à filosofia, da economia à culinária, da religião à ciência, e da literatura ao ambientalismo.
Da mesma forma que se esquiva, escorregadia, quando a procuramos agarrar, a enguia permanece ainda hoje, depois de séculos de observação e especulação, um mistério. Na zoologia, aliás, costuma designar-se algo insondável como «a questão da enguia». Sabe-se que faz uma longa viagem desde o Mar dos Sargaços e que a ele regressa para se reproduzir, mas não se sabe como se orienta ou como percorre 7 a 8 mil quilómetros em poucos meses, nem nunca alguém observou a sua reprodução. Hermafrodita, quando finalmente se descobriu os órgãos reprodutivos numa enguia a questão da sua reprodução tornou-se o centro do interesse científico do Iluminismo. O próprio Freud viveu dias a observar e dissecar enguias, mas foi incapaz de descobrir o seu sexo, o que pode muito bem explicar a sua desistência das ciências naturais e a sua crescente obsessão pela sexualidade do ser humano. A enguia passa por diversas metamorfoses, e prefere as águas mais profundas, vivendo pacientemente na escuridão, diz-se até que mais de cem anos, e morre provavelmente assim que se reproduz. Permanece viva a saracotear-se mesmo sem cabeça, anda no mar e na terra, e parece capaz de ressuscitar, mas recusa-se a viver em cativeiro. A sua carne tem um sabor gorduroso e «ligeiramente selvagem» capaz de deixar o narrador nauseado – e muitos de nós, eu inclusive – mas é um pilar da culinária sueca, onde se celebra até a festa da enguia tradicional, e de outros países, além de um dos alimentos mais procurados na cozinha japonesa. Uma comida caseira simples que movia a classe trabalhadora, rica em proteína e mais barata do que a carne, era procurada pelos pobres e desprezada pelos ricos. A pesca da enguia na costa sueca é uma tradição que persiste desde a Idade Média, cujo segredo é transmitido oralmente, e se tornou em património cultural. Como uma pescadinha de rabo na boca, à medida que a sua extinção parece iminente, o interesse científico pela enguia aumenta, podendo implicar a proibição total da sua pesca na Europa, o que significa, por arrastamento, que se perde parte da cultura de uma comunidade. E o mistério que sempre envolveu a enguia pode agora implicar o desaparecimento da espécie, porque tal como a sexta extinção é provocada pelo ser humano, é apenas ele quem pode encontrar respostas, se a conseguir atrair do oculto em que se esconde.
Patrik Svensson nasceu em 1972 na Suécia e é jornalista de artes e cultura no jornal Sydsvenskan. Escreveu este seu primeiro livro como uma homenagem ao pai e a um dos animais mais enigmáticos do mundo. Ver artigo
A Civilização do Peixe-Vermelho – Como peixes vermelhos presos aos ecrãs dos nossos smartphones, de Bruno Patino, publicado pela Gradiva, é um breve tratado sobre o mercado da atenção que se lê no equivalente a duas horas de deriva pelas redes sociais. Da autoria do director do canal Arte France e da escola de jornalismo do Instituto de Estudos Políticos de Paris, condensa em 117 páginas alguns dados assustadores que nos ajudam a tomar consciência da nossa relação com os smartphones. Os peixes que em criança colocávamos num aquário têm uma curta memória, cuja atenção dura 8 segundos. Depois disso, o seu «universo mental reinicia-se» e a repetição transforma-se em novidade. No caso do homem, o attention span resume-se a 9 segundos.
«Vivemos no mundo dos drogados da conexão estroboscópica.» (p. 14)
Estima-se que 30 minutos é o tempo máximo adequado de exposição às redes sociais, e à Internet em geral, sem que a nossa saúde mental fique comprometida.
«O nosso inferno diário somos nós mesmos. Sem descanso possível, repletos de dopamina, mantemo-nos constantemente despertos.» (p. 30)
A Universidade de Oxford tentou fazer um cálculo entre o tempo livre disponível para cada indíviduo e o acesso à informação, cultura e entretenimento, mas a oferta é hoje infinita. E contudo, com um sentimento crescente de culpa, conforme sentimos o tempo a esvair-se, numa era em que temos tudo para ganhar mais tempo de vida e mais tempo na vida, o nosso cérebro funciona num círculo vicioso, enquanto passamos em revista todas as notificações do nosso telefone, quase sempre assim que acordamos: «De dois em dois minutos, 30 vezes por hora de vigília, uma vez a cada três horas de sono, 542 vezes por dia, 198 mil vezes por ano» (p. 18). Nos Estados Unidos, um jovem passa 5 horas e meia ligado a algum dispositivo digital e mais de 8 horas frente a um ecrã de computador; 22 % dos jovens (entre os 22 e os 30 anos) não têm qualquer actividade académica ou profissional.
«A vertigem provocada pela nossa separação das ferramentas conectadas e respectivas aplicações é um objecto de laboratório, tal como a necessidade compulsiva de responder às solicitações digitais que nos invadem os ecrãs.» (p. 24)
Vivemos numa era de reflexos e condicionamentos, em que o nosso tempo e os nossos dados são espiados, controlados e manipulados pelos GAFAM (os gigantes da Web: Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft). Se renunciarmos durante algum tempo ao Facebook, este automaticamente lança um alerta de que há já algum tempo que não publicamos nada e os nossos amigos querem saber de nós… Se bem que, pelo menos no caso do iphone, já somos notificados todos os domingos, mediante um relatório semanal, da média de horas que dispendemos nas redes sociais durante essa semana. Se assistimos a uma série na Netflix, nem sequer precisamos de decidir se veremos um episódio mais, pois esta plataforma automaticamente passa ao capítulo seguinte, deixando-nos num transe de dependência e de «frustração associada à visualização incompleta» (p. 29). Quando uma criança é confrontada desde tenra idade com estímulos visuais e auditivos (como quando lhes colocamos um ecrã em frente para que ela se silencie a ver os desenhos animados enquanto come), instalar-se-á depois uma «fadiga decisória» e «abandona a luta contra o prazer imediato originada pela reacção a um estímulo eléctrico» (p. 27), por isso é perfeitamente natural que nos anos vindouros não pegue num livro…
«Dependência dos ecrãs, extremismo do debate público, polarização do espaço público, reflexos que se sobrepõem à reflexão, a ágora transformada em arena: assim é a nossa época. É o melhor e o pior dos tempos.» (p. 38) Ver artigo
O movimento new age e a literatura de auto-ajuda foram substituídos nas duas últimas décadas por uma nova indústria da felicidade e do desenvolvimento pessoal, avaliada em mais de 4 biliões de dólares, que abrange uma ampla gama de serviços e produtos, como a autoajuda, o coaching, o mindfulness, cursos de inteligência emocional, aconselhamento psicológico positivo, medicação que potencia boa disposição, aplicações para o telemóvel, livros de auto-ajuda. A felicidade é hoje um indicador de progresso nacional, social e político. Devo confessar que considerei urgente a leitura de A Ditadura da Felicidade, de Edgar Cabanas e Eva Illouz, publicado pela Temas E Debates, não por ser um descrente da literatura que vende a felicidade como um produto (que não é novo, mas que se vende agora como legítimo – cientificamente comprovado – e premente), mas justamente por ser um curioso.
A dimensão e o impacto da investigação académica sobre a felicidade e temas afins, como emoções positivas ou bem-estar, decuplicou, envolvendo a psicologia mas também áreas como a saúde, a economia, a educação, a gestão. Conceitos que antes eram vistos com desconfiança ou como charlatanice, e que continuam a padecer da «falta de um núcleo de conhecimento rigoroso e comum», são agora relançados num novo embrulho compósito, numa «mistura mal corroborada e eclética de fontes heterogéneas», de psicanálise, religião, behaviourismo, medicina, neurociência, ocultimos, etc. (p. 43).
A felicidade é hoje um indicador de progresso nacional, social e político. E é vendida como «o mais valoroso investimento pessoal a fazer» (p. 183), pois pessoas mais felizes significa que são mais saudáveis, mais produtivos, melhores cidadãos. As sociedades modernas proporcionam aos seus cidadãos maior auto-consciência, mais liberdade, mais oportunidades de escolha e de seguirem os seus sonhos. Mas todos os anos há milhões de pessoas que recorrem a terapias, serviços e produtos da psicologia positiva, pois, como este livro demonstra, a psicologia positiva criou um círculo vicioso: «Há sempre uma dieta a seguir, um vício a largar, um hábito mais saudável a adquirir, (…) uma falha a corrigir» (p. 216). E as panaceias que se vendem não resolvem os problemas, antes os agravam, pois geram uma frustração constante; culpabilizam o eu por não ser feliz, uma vez que todas as ferramentas estão em si próprio; criam uma necessidade de autovigilância permanente para não termos pensamentos negativos que nos tornam infelizes; dão novas vestes ao individualismo neoliberal, gerando maior egotismo e auto-absorção (basta fazer um passeio pelas redes sociais em que a maior parte dos jovens influenciadores parecem extáticos de felicidade). Mais flagrante ainda é a análise de como a psicologia positiva se tornou uma forma de controlo social, pois desvia o foco das condições em que o cidadão vive, especialmente no contexto empresarial que faz livre uso destes serviços, com a pretensão de facilitar a adaptação eficaz dos trabalhadores a uma cultura neoliberal e a enganadora justificação de reduzir o stresse, que é criado, justamente, pelo actual espírito empresarial.
Edgar Cabanas é doutorado em Psicologia pela Universidade Autónoma de Madrid, professor na Universidade Camilo José Cela, em Madrid, e investigador associado no Max Planck Institute for Human Development, em Berlim.
Eva Illouz é professora de Sociologia e Antropologia na Hebrew University of Jerusalem e na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, colunista do diário israelita Haaretz e autora de diversos livros. Em 2018, recebeu o prémio EMET, o maior galardão científico de Israel, e foi condecorada com a Legião de Honra de França. Ver artigo
Espinosa viveu num tempo em que a crença religiosa era lei (vigorava a Inquisição) e qualquer pensamento desviante condenava um livre pensador à prisão ou à morte. Contudo, apesar do risco constante, manteve-se leal ao seu próprio pensamento filosófico e concebeu uma noção inovadora de Deus que ultrapassava a crença religiosa imposta.
O Milagre Espinosa – Uma filosofia para iluminar a nossa vida bestseller vendeu mais de 300 mil exemplares em França, foi publicado em Portugal pela Quetzal e narra-nos a vida e obra de Espinosa. Narra-nos, porque apesar de este livro de Frédéric Lenoir não ser ficção, conta-nos a história de Baruch de Espinosa de um jeito claro e envolvente. Note-se, por exemplo, como o autor designa o filósofo pelo seu primeiro nome, Baruch, nomeadamente na primeira parte do livro, quando fala de Espinosa ainda antes da sua obra ser publicada e o seu pensamento começar a circular pela Europa. Oscila-se assim, aparentemente, entre os nomes Baruch e Espinosa conforme o narrador (porque o autor assume-se sempre na primeira pessoa e partilha o seu próprio pensamento) se refere à pessoa ou ao filósofo.
Os antepassados de Espinosa foram, provavelmente, judeus espanhóis expulsos em 1492 e que se refugiaram em Portugal, mas que novamente partem em busca de asilo para as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda).
«De uma educação religiosa dogmática e rigorista, assente no medo e na esperança, que abandona a partir do final da adolescência, passa, de maneira apaixonada, para uma busca livre pela verdade e pela verdadeira felicidade, assente apenas na razão.» (p. 32)
Com 23 anos, tendo perdido quase toda a família e sobrevivido a uma possível tentativa de assassinato, Espinosa renuncia à publicação de alguns dos seus livros ou passa a publicá-los sob pseudónimo, contudo o seu pensamento é inconfundível, pelo que isso pouco adianta. Os anciãos da sinagoga de Amesterdão decretam um herem, um acto radical e raro, banindo o filósofo holandês da comunidade.
«Com a ajuda do julgamento dos santos e dos anjos, excluímos, expulsamos, amaldiçoamos e execramos Baruch de Espinosa, (…) em presença dos nossos livros sagrados e dos seiscentos e treze mandamentos que neles estão contidos. (…) Que o Pai Eterno inflame contra esse homem toda a Sua ira e faça cair sobre ele todos os males mencionados no livro da Lei: que o seu nome seja apagado deste mundo para todo o sempre» (p. 39)
A sua obra Ética, publicada um ano depois da sua morte, foi condenada e catalogada no livro negro da Igreja Católica. Mas o pensamento e o nome de Espinosa mantiveram-se vivos e a sua filosofia é agora recuperada neste livro, a uma nova luz, de modo a iluminar a nossa vida e nos ajudar a viver melhor. Pode até parecer um livro de desenvolvimento pessoal (vulgo auto-ajuda), não fosse estar assente numa leitura crítica atenta e pertinente das obras de um dos grandes filósofos. Criador da etologia ao propôr uma ética «conducente a uma vida boa e feliz, a qual assentará numa metafísica, ou seja, numa conceção de Deus e do mundo» (p. 109), rompeu com a herança judaico-cristã que «circunscreve Deus a uma só definição» (p. 119) e foi pioneiro na defesa de uma leitura histórica e crítica da Bíblia.
São muitas as passagens deste livro que gostaria de evocar, mas para terminar fica uma passagem bastante actual (e um pouco extensa) em que Lenoir consegue revivificar o pensamento de Espinosa, falecido em 1677, e transpô-lo para o nosso tempo: «Todo o pensamento de Espinosa assenta nesta ideia, que defende que um indivíduo estará tanto mais em harmonia com os outros quanto melhor estiver consigo mesmo. Ou seja, as nossas democracias serão tanto mais sólidas, vigorosas e vivas quanto mais os indivíduos que as compõem forem capazes de dominar as suas paixões tristes – o medo, a ira, o ressentimento, a inveja, etc. – e de pautar a existência pelos princípios da razão. Mesmo se não o diz de forma explícita, também se percebe que está subjacente a ideia de que os cidadãos, mais movidos pelas emoções do que pela razão, podem eleger ditadores ou demagogos.» (p. 98) Ver artigo
Diário de viagens, ensaio antropológico e registo zoológico, onde não faltam fotos, as Aventuras de um Jovem Naturalista – As Expedições Zoológicas são contadas em 448 páginas de puro deleite, neste livro publicado pela Temas e Debates. David Attenborough está na sua sétima década de carreira televisiva e é uma voz inconfundível que acompanhou muitos de nós desde a tenra infância em que às manhãs de domingo de desenhos animados se seguiam os programas de vida animal. Estudou Ciências Naturais em Cambridge, começou a trabalhar na BBC em 1952 como produtor estagiário, até que aos 26 anos, com a sua licenciatura em zoologia e dois anos de experiência como produtor de televisão novato, concebe o plano de recolher animais, numa expedição conjunta organizada pela BBC e pelo Zoo de Londres, e filmar a sua captura e recolha, para por fim mostrá-los em estúdio. Em Março de 1955 parte para a Guiana Britânica e desde aí desenvolve o hábito de escrever as suas experiências nessas expedições, cujo relato das três primeiras nos chega agora, actualizado e abreviado, onde se encontram animais para todos os gostos (como uma pitão, uma preguiça, um tamanduá, uma cria de urso, um orangotango, dragões-de-komodo e tatus). Este método de captura de animais poderá parecer ultrapassado e gerar controvérsia no revisionismo constante que vivemos na actualidade, contudo o maravilhamento e o respeito do autor pela vida animal e pela sua preservação são inegáveis, bem como o interesse pelos povos que vai conhecendo e a importância da preservação do seu meio – se bem que, ao longo dos relatos, sentimos que a ocidentalização já tinha chegado, com maior ou menos impacto, às mais remotas comunidades visitadas. E curiosamente perceberemos como é comum estas pessoas terem animais domesticados, como as duas capivaras que foram criadas juntas com duas crianças e só entram no rio quando estão todos juntos.
Tão inconfundível quanto a voz de David Attenborough, é a ironia e sentido de humor que transparece nestas páginas que, a certa altura, se afigura uma recriação do episódio bíblico da Arca de Noé:
«A viagem de regresso pelo rio abaixo começou bem. Tínhamos construído uma caixa grande para o pecari com troncos finos de árvores jovens atados com tiras de casca, e colocámo-la na proa da canoa. Houdini [um porco] portou-se muito bem na primeira meia hora; o mutumporanga, de patas amarradas com um pedaço de fita, estava calmamente empoleirado na lona que cobria o nosso equipamento; as tartarugas passeavam pelo fundo da canoa, papagaios e araras guinchavam amigavelmente aos nossos ouvidos e os macacos-capuchinhos estavam sentados todos juntos numa caixa de madeira, catando afetuosamente o pelo uns dos outros.» (p. 98) Ver artigo
Já o escrevi antes. Quando começo um livro raramente leio a sinopse, por isso, um pouco como a vida, nunca sei o que vou encontrar nas primeiras páginas do livro que retiro da estante. Mas há livros que nos agarram desde a primeira página e que nos perturbam tanto que o formigueiro nas pontas dos dedos para escrever se torna insuportável e impossível de ignorar.
Regresso a Reims é um ensaio onde a escrita autobiográfica, uma vez mais, se entrelaça com a reflexão sociológica. Quando o filósofo francês Didier Eribon perde o pai, que não via há décadas, ao ponto de não o reconhecer numa foto tirada poucos dias antes de morrer, não comparece ao seu funeral, nem faz qualquer tentativa para ver os irmãos, de quem se separou há 30 anos e provavelmente também já não seria capaz de reconhecer. Mas quando visita a sua mãe, no dia seguinte ao funeral, acaba por dar início a um reencontro com o eu que tanto procurou, sem sequer se aperceber, reprimir. Tendo saído de Reims pelos vinte anos para viver em Paris, fugindo a um pai violento e homofóbico, para poder começar a ser verdadeiramente ele, verdadeiramente livre, sem ter de se envergonhar da sua sexualidade, Didier Eribon percebe que afinal ao libertar a sua sexualidade acaba por reprimir o seu passado sócio-cultural enquanto prossegue numa ascensão social. Sai de um armário sexual para se meter num armário social.
Este livro analisa como quanto mais nos afastamos no espaço mais difícil se torna, por vezes, reconhecer os nossos pais, aquela que era a nossa casa, e as nossas referências identitárias passam a ser um universo estranho. Nunca saí de casa para fugir à família, mas primeiro a 300 km de distância e depois a 7000 km, sensivelmente, em linha recta, percebo como foi preciso correr mundo para encontrar liberdade, para me libertar de um certo jugo, mesmo quando involuntário, em que constantemente somos interpelados a responder para onde vamos, com quem estivemos, o que fizemos. E como apesar da distância acabamos por ainda assim nunca nos encontrarmos de facto, pois há vozes interiores que nos perseguem. Ao contrário do autor deste livro, ou de James Baldwin, constantemente referido, que também viajou para Paris para se encontrar como homem negro e gay, não tive a infelicidade de ter um pai violento ou opressor. Pelo contrário, foi ele o primeiro a estender a mão, a querer ouvir, a tentar perceber. O mesmo não aconteceu, em contrapartida, com a minha mãe, que recriminou tanto como se culpava a si própria, querendo perceber em que errara, que apoio poderia solicitar, a vergonha que seria se os outros soubessem. Mas se Didier Eribon optou pela atitude mais cobarde ou simplesmente desesperada de cortar todas as ligações, há aqueles que são incapazes de cortar o cordão umbilical e se mantêm firmes e presentes, mesmo quando longe. E se bem que eu nunca tenha vivido num bairro social em Reims, também os meus pais são da classe operária e nenhum acabou a escolaridade. Por isso, quando as pessoas me viam sempre agarradas a um livro para onde quer que eu fosse, se questionava «A quem é que será que ele sai?». Por isso, mesmo quando concluí a licenciatura, e depois o mestrado, e um dia o doutoramento, e outro mestrado, etc., etc., eu sabia que havia um brilho de orgulho nos olhos dos meus pais, mas porque foram educados com poucas manifestações de carinho, aliás ambos foram criados por outras pessoas que não os pais, e por isso nunca foram de rasgados elogios. Levou muito tempo a perceber que ainda que pudesse haver, de facto, algum complexo em relação a mim, o orgulho falou mais alto. Não vivíamos em Reims, mas vivíamos na periferia da cidade. O meu pai trabalhava todos os dias de manhã à noite, e pela noite fora, e aos sábados, chegando a casa com uma farda a tresandar a óleo e a pele dos dedos estalada e enegrecida do óleo dos motores. Lavava as mãos com detergente da roupa em pó na banheira. Aos 12 anos, mudámos do campo para um apartamento. Aos 25, compraram o nosso segundo apartamento. Sempre fizemos viagens em família ao estrangeiro, em que os meus pais faziam sempre questão de nos levar. Quando eu era criança os meus pais contavam os tostões para o meu leite, mas na vida nunca me faltou nada, e quando cheguei à universidade tive uma bolsa. Não estou a querer dizer que ao contrário do autor deste livro, eu também não tive momentos em que a classe social me poderia envergonhar, em que por vezes os corrijo no seu português. Mas é o orgulho que também do meu lado fala mais forte e a grata percepção de que eles sempre me apoiaram, mesmo quando não sabiam como fazê-lo. Tal como eu os tenho ajudado como posso a serem mais fortes. Quando um pai morre ou adoece, é o nosso próprio sentido de mortalidade que dispara e é a nossa vida que colocamos em causa, numa angústia existencial de incerteza, de perda de referência, de abalo das fundações. O meu pai, mecânico, trabalhou tanto para nos fazer subir na vida que se perdeu pelo caminho. A minha mãe deu-me o que tinha de melhor, o seu amor incondicional e a esmerada educação que recebeu dos avós. E mesmo que haja uma clivagem social e cultural gradual, nunca senti que não precisava dos meus pais, ao ponto de os negar e dar por mim a negar-me. Mas estou grato por eles próprios terem sido capazes de rasgar as suas certezas na vida e, mais do que me aceitarem, sentirem orgulho. Orgulho esse que é recíproco, mesmo quando ainda hoje esbarramos tantas vezes em línguas diferentes de atitutes distintas perante a vida. E um amor imenso por uma mãe que teve de cortar as suas asas para as emprestar aos filhos e depois, quando quis voar, teve de passar pela dor de fazer as suas asas voltarem a crescer. Ver artigo
Em tempos foi feita uma sondagem aos portugueses e constatou-se que uma esmagadora maioria não se rendia aos livros de bolso. Talvez porque na altura ainda não fora lançada a magnífica Terra Incognita, uma fantástica colecção de livros de bolso da Quetzal destinados a viajantes, composta por títulos de autores como Paul Theroux, Geoff Dyer ou Bruce Chatwin.
Michel Onfray, filósofo e intelectual francês, fundador da Universidade Popular de Caen, gratuita e criada com base num manifesto seu, tem mais de 50 títulos, versando gastronomia, filosofia, pintura, história, literatura e geografia.
Este livro, tão pequeno quanto precioso, analisa os vários passos da viagem, desde os preparativos ao regresso, do rememorar da viagem e à revisitação pela escrita ao planear uma nova partida, pois a vida é uma errância e permanecer no mesmo local ou rever infindamente os mesmos lugares impede-nos de ler «o poema do mundo» na sua completude. Este não é um guia prático, mas sim um tratado filosófico, de início mais abstracto, num devaneio poético, até que os argumentos se começam a alinhavar numa sucessão lógica, onde o princípio do hedonismo e da liberdade são fios condutores.
Para Onfray, a viagem começa numa biblioteca ou numa livraria, o que honestamente me preocupou, atendendo à minha maníaca opção de nunca consultar nada sobre os destinos a que me proponho ou a que sou convidado a ir – mesmo quando parti um pouco às cegas para países desconhecidos onde iria viver durante anos (Polónia, Botsuana, cidade da Beira em Moçambique, tendo que evitar agilmente as várias tentativas de me impingirem vídeos e imagens dos lugares para onde me aventurava partir). Mas Onfray clarifica, felizmente, que uma «mera linha de um autor mesmo que mediano desperta mais o desejo pelo lugar descrito do que fotografias ou mesmo filmes, vídeos ou reportagens. Entre nós e o mundo, coloquemos prioritariamente as palavras.» (p. 26) Ao invés de limitar o nosso deslumbramento inicial ou iludir as expectativas com imagens, podemos, portanto, ficar com a vasta plurissignificação de um verso, onde pode caber toda a poesia do mundo por ver.
«O mundo, simultaneamente vasto e limitado, o eu de cada um no seu centro, a viagem como convite a desenhar, para si, uma rosa dos ventos, depois o domicílio para se sentar e cultivar uma identidade – eis aqui algumas referências num cosmo a priori sem alegria. A geografia serve antes de mais para elaborar uma poética da existência, para dar oportunidade ao corpo de funcionar como uma bela máquina sensual, capaz de conhecer exercitando cada um dos cinco sentidos, sozinhos ou combinados» (p. 87)
Não posso deixar de evocar aqui o Sapiens – De Animais a Deuses – História Breve da Humanidade, de Yuval Noah Harari, que analisa justamente como a humanidade começou como uma sociedade de caçadores-recolectores, o que implicava justamente errância e liberdade, aproveitando ao máximo os diversos recursos da natureza, até que com a Revolução Agrícola os nossos problemas parecem ter começado, numa luta inglória contra a terra que justifique o sedentarismo e uma ilusão de segurança ou conforto. Onfray começa justamente por remontar o gene da viagem aos tempos em que com Caim e Abel a humanidade se dividiu entre o camponês e o pastor, sendo que Abel, o pastor, terá sido justamente o favorito de Deus, ao ponto de desencadear a fúria fratricida. E é desde então que todas as «ideologias dominantes» exercem domínio e violência sobre as minorias nómadas, como o judeu errante ou os ciganos. Ver artigo
Encontrei finalmente coragem e tempo para me aventurar nesta viagem no tempo, um livro que vai já na sua 17.ª edição, com mais de 46 000 exemplares vendidos em Portugal, apenas para descobrir que esta leitura é verdadeiramente viciante e aprazível. Além da erudição do autor, estas páginas estão repletas de uma fina ironia e um saudável humor sobre o percurso da Humanidade. Yuval Noah Harari não tem pejo em contestar conhecimentos e ideias que se possam ter instituído como verdades científicas sobre a vida, o homem, e o seu papel no mundo. Historiador, investigador e professor de História do Mundo na Universidade Hebraica de Jerusalém, uma das melhores no mundo, Yuval Noah Harari (com 3 obras publicadas pela Elsinore) leva-nos a pensar como aquilo que se entende como evolução pode ter sido uma regressão, e não se coíbe de julgar o homem como um macaco cujos saltos evolutivos que nos transformaram em deuses foram também letais para o mundo e para as outras espécies com que o partilhamos, extinguindo desde o início dos tempos centenas de espécies, até porque a história da humanidade é ainda bastante recente e os poucos milénios que distam entre a Revolução Agrícola – que serviu sobretudo para nos prender e escravizar sob o jugo da roda do tempo – e os impérios e cidades que se foram alastrando não foram suficientes para permitir a «evolução de um instinto de cooperação em massa» (p. 128), pelo que ainda hoje pode parecer contraprodutivo vivermos num pequeno espaço enquanto não aprendermos verdadeiramente a viver em sociedade e quando o fazemos é porque seguimos mitos, como a igreja ou o Estado, que têm muito pouco de credíveis. Ver artigo
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