Fica uma amostra de um artigo a partir de uma comunicação sobre Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, de Luis Cardoso de Noronha – um livro extraordinário (em todas as acepções da palavra) publicado em 2001 pela Dom Quixote: Ver artigo
A Pantera-das-Neves, de Sylvain Tesson, publicado pela Bertrand Editora, é mais um excelente título a integrar o universo dessa literatura de viagens que alia o relato da expedição à lírica.
Durante a projecção do seu filme sobre o lobo-abissínio, Vincent Munier, fotógrafo da vida selvagem, desafia Sylvain Tesson a praticar consigo essa «arte frágil e delicada» da espera: «camuflar-se na natureza e ficar à espera de um animal, sem nenhuma certeza de que ele aparecesse» (p. 15). Esse animal que Munier persegue há 6 anos nos planaltos do Tibete, no Inverno, a mais de quatro mil metros de altitude, é a pantera-das-neves – animal avistado tão raramente que levou a crer estar extinto (em português designa-se leopardo-das-neves, mas por razões adiante explicadas optou-se na edição portuguesa pelo nome que dá título à edição francesa da obra).
A viagem aos Himalaias desacelera o ritmo de Sylvain Tesson, que considerava a imobilidade «um ensaio geral da morte» e vivia os dias num frenesi, como quem enfrenta a brevidade da vida. Sem saber ao certo a sua função, encarregue apenas de não atrasar o grupo da expedição e de não espirrar se avistassem o mítico animal, o autor-narrador dá por si a viver os dias repartidos em pequenas etapas, a contemplar a natureza e, por conseguinte, a incorrer numa exploração interior da alma – ressalve-se que o cenário do relato é o Tibete – enquanto simultaneamente reflecte, quase sempre de forma irónica, sobre a existência humana: «Definição de homem: a criatura mais próspera da história dos seres vivos. Enquanto espécie, nada a ameaça: desbrava, edifica, dissemina-se. Depois de se ter disseminado, acumula.» (p. 81)
Nesse espaço inóspito de onde até os deuses se haviam retirado, o avistamento tão desejado quanto impossível da pantera-das-neves ganha conotações metafísicas, como se a pantera fosse o único deus possível naquele reino fora do mundo. Mas avistá-la pode também ser o equivalente a reencontrar um amor perdido ou platónico, incorporado nessa elegante fera: «A pantera, como o pensamento pagão, circula no labirinto. Dificilmente compreensível, palpita, outorgada ao mundo, engalanada. A sua beleza vibra na fúria. Estendida entre as coisas mortas, plácida e perigosa, macho de nome feminino, ambígua como a mais elevada poesia, imprevisível e sem conforto, multicolor, sinuosa» (p. 143)
Sylvain Tesson, francês, nascido em 1972, é escritor, poeta, ensaísta, explorador. Escalou, entre outros, a Notre-Dame de Paris, a Torre Eiffel e o Monte Saint-Michel – por vezes para apoiar causas, como a defesa do Tibete. A Pantera-das-Neves, distinguido com o Prémio Renaudot 2019, é o seu primeiro livro publicado em Portugal. Ver artigo
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