«Uma das primeiras balas entra pela janela aberta por cima da sanita diante da qual se encontra Luca, de pé.» (p. 6)
A frase inaugural deste romance agarra de imediato o leitor, até porque a história arranca em plena acção, com mãe e filho a procurarem proteger-se de um tiroteio na casa de banho. Luca, o filho de Lydia, tem oito anos. Os dois são os únicos sobreviventes desse ataque dos sicarios naquele que é um bairro bom de Acapulco. Não haverá testemunhas pois apesar do movimento por trás das janelas dos vizinhos, estes já se preparam «para negar credivelmente que viram seja o que for» (p. 12) quando chega a polícia, que também não vai fazer nada, enquanto toda a família (16 pessoas) está morta no quintal das traseiras. A polícia não vai ajudar porque, das mais de duas dúzias de agentes da autoridade e pessoal médico, uma boa parte recebe do cartel da zona 3 vezes o ordenado que o Governo lhes paga. No México, a taxa de crimes por resolver situa-se acima dos 90 %.
Sebastián, marido de Lydia, era repórter num local onde os cartéis assassinam um jornalista de tantas em tantas semanas: «Tudo aconteceu tão depressa nos últimos anos. Acapulco sempre teve pendor para a extravagância, portanto, quando finalmente caiu em desgraça, fê-lo com o espectacular espalhafato que o mundo se habituara a esperar da cidade. Os cartéis entregaram-se à farra e pintaram as ruas de sangue.» (p. 63-64)
Apesar da acalmia que se instalara mais recentemente, Sebastián fora ameaçado, diversas vezes, para parar de escrever sobre os cartéis: «Uma imprensa livre era a última linha de defesa, dizia ele, a única coisa que protegia o povo mexicano da aniquilação total» (p. 42). E este seu idealismo e integridade pareciam a Lydia uma hipocrisia egoísta. O que ela não sabe é que Javier, o cliente que se tornou um visitante regular da sua livraria e um amigo, é o líder do cartel, pelo que, quando a verdade é desvendada, cria-se uma relação de amor-ódio entre ambos (com ecos intertextuais de O Amor nos Tempos de Cólera, de García Máquez).
Ficaremos a saber como esta mãe se sente «esfarrapada como um pedaço de renda, definida não tanto pela matéria de que é feita, mas pelas formas que lhe faltam.» (p. 105), enquanto engole a dor e se empenha em chegar aos E.U.A., o único porto seguro para si e, particularmente, para o seu filho, pois estranhamente parece que é Luca o mais procurado. A forma determinada e calculista, de fria eficácia, com que Lydia supera o trauma e inicia uma fuga pela sobrevivência, pode até desconcertar o leitor mas, como afirma o narrador, «se há uma coisa boa no terror é o facto de ser mais imediato que o luto» (p. 31). Lydia deparar-se-á, por fim, com a única forma possível de migrar para o país vizinho: «Lydia estuda os comboios de mercadorias em que se deslocam os migrantes da América Central, de uma ponta à outra do país. De Chiapas a Chihuahua, agarram-se ao cimo dos vagões. O comboio ganhou o nome La Bestia, porque a viagem é uma missão de terror em todos os sentidos possíveis e imagináveis. A violência e os raptos são endémicos ao longo da linha férrea e, além dos perigos criminais, os migrantes também correm o risco, todos os dias, de ficarem mutilados ou de morrerem, quando caem do alto dos comboios.» (p. 87)
A Besta: uma viagem de comboio a que todos os anos sobrevive meio milhão de pessoas. Nessa viagem, Luca, o nosso pequeno herói, «um homem de idade num corpinho mínimo» (p. 178), e a sua mãe conhecerão ainda personagens fascinantes com quem partilham o fado de terem de mudar de país para se manterem vivos, afastando-se da violência ou da miséria: «é aquilo que todos os migrantes têm em comum, é aquela a solidariedade que existe entre eles, apesar de virem todos de diferentes lugares e diferentes circunstâncias, uns urbanos, outros rurais, uns de classe média, outros pobres, uns educados, outros analfabetos, salvadorenhos, hondurenhos, guatemaltecos, mexicanos, índios, cada um deles carrega uma história de sofrimento em cima daquele comboio rumo ao Norte.» (p. 183)
Terra Americana, de Jeanine Cummins, publicado em Março pelas Edições Asa, também disponível em ebook e com exímia tradução de Tânia Ganho, é um dos livros mais controversos deste ano. A autora foi inclusive acusada de “apropriação cultural” pois é um romance escrito sobre o México por uma autora norte-americana, pelo que não “pode conhecer a fundo a realidade que descreve”.
A leitura deste livro quer-se compulsiva, virando as páginas ao ritmo da tensão, e a prosa é belíssima. É particularmente bem conseguida a forma como a narrativa oscila entre a focalização na perspectiva de Luca e da mãe, sem haver uma alternância sistemática entre as personagens, sendo que essa cisão de perspectiva pode ocorrer subitamente de um parágrafo para o seguinte, conforme aprouver melhor vivenciar a intriga por um dos dois migrantes. Ver artigo
Pesquisar:
Subscrição
Artigos recentes
Categorias
- Álbum fotográfico
- Álbum ilustrado
- Banda Desenhada
- Biografia
- Ciência
- Cinema
- Contos
- Crítica
- Desenvolvimento Pessoal
- Ensaio
- Espiritualidade
- Fantasia
- História
- Leitura
- Literatura de Viagens
- Literatura Estrangeira
- Literatura Infantil
- Literatura Juvenil
- Literatura Lusófona
- Literatura Portuguesa
- Música
- Não ficção
- Nobel
- Policial
- Pulitzer
- Queer
- Revista
- Romance histórico
- Sem categoria
- Séries
- Thriller
Arquivo
- Novembro 2024
- Outubro 2024
- Setembro 2024
- Agosto 2024
- Julho 2024
- Junho 2024
- Maio 2024
- Abril 2024
- Março 2024
- Fevereiro 2024
- Janeiro 2024
- Dezembro 2023
- Novembro 2023
- Outubro 2023
- Setembro 2023
- Agosto 2023
- Julho 2023
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Março 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Agosto 2022
- Julho 2022
- Junho 2022
- Maio 2022
- Abril 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Novembro 2021
- Outubro 2021
- Setembro 2021
- Agosto 2021
- Julho 2021
- Junho 2021
- Maio 2021
- Abril 2021
- Março 2021
- Fevereiro 2021
- Janeiro 2021
- Dezembro 2020
- Novembro 2020
- Outubro 2020
- Setembro 2020
- Agosto 2020
- Julho 2020
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Dezembro 2019
- Novembro 2019
- Outubro 2019
- Setembro 2019
- Agosto 2019
- Julho 2019
- Junho 2019
- Maio 2019
- Abril 2019
- Março 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Outubro 2018
- Setembro 2018
- Agosto 2018
- Julho 2018
- Junho 2018
- Maio 2018
- Abril 2018
- Março 2018
- Fevereiro 2018
- Janeiro 2018
- Dezembro 2017
- Novembro 2017
- Outubro 2017
- Setembro 2017
- Agosto 2017
- Julho 2017
- Junho 2017
- Maio 2017
- Abril 2017
- Março 2017
- Fevereiro 2017
- Janeiro 2017
- Dezembro 2016
- Novembro 2016
- Outubro 2016
Etiquetas
Akiara
Alfaguara
Annie Ernaux
Antígona
ASA
Bertrand
Bertrand Editora
Booker Prize
Caminho
casa das Letras
Cavalo de Ferro
Companhia das Letras
Dom Quixote
Editorial Presença
Edições Tinta-da-china
Elena Ferrante
Elsinore
Fábula
Gradiva
Hélia Correia
Isabel Allende
Juliet Marillier
Leya
Lilliput
Livros do Brasil
Lídia Jorge
Margaret Atwood
Minotauro
New York Times
Nobel da Literatura
Nuvem de Letras
Pergaminho
Planeta
Porto Editora
Prémio Renaudot
Quetzal
Relógio d'Água
Relógio d’Água
Série
Temas e Debates
Teorema
The New York Times
Trilogia
Tânia Ganho
Um Lugar ao Sol