Cada obra deste autor é uma deliciosa descoberta, em particular para aqueles que partilham o seu gosto pela leitura, pois como afirma Alberto Manguel: «A biologia diz-nos que descendemos de criaturas de carne e osso, mas, no fundo, sabemos bem que somos filhos e filhas de fantasmas de papel e tinta.» (p. 10)
Publicado pelas Edições Tinta-da-china, à semelhança de outras obras do autor, que têm vindo a ser traduzidas a um ritmo regular, como A Biblioteca à Noite ou Embalando a Minha Biblioteca, este livro é também uma proposta de glossário, à semelhança do belíssimo Dicionário de Lugares Imaginários. O autor reconhece que há personagens, esses fantasmas de papel e tinta, que sobrevivem aos autores e ganham uma vida exterior aos livros que os viram nascer: «Os leitores do mundo veneram escritores como Shakespeare e Cervantes, mas esses seres, imortalizados em retratos imaginários e solenes, são menos tangíveis que as suas criaturas mortais.» (p. 11)
Estes monstros fabulosos que assombram a vida de um leitor – e mais do que um erudito, um ex-director da Biblioteca Nacional da Argentina, um escritor, um dos maiores bibliófilos do mundo (a par de Umberto Eco), é como leitor que Alberto Manguel se identifica – não são todos eles criaturas temíveis, mas sim seres fantásticos em que nos revemos, que nos inspiram as mais diversas qualidades quando a vida nos falha, figuras que norteiam aqueles que se atrevem a manter vivo o sonho: «Ao contrário dos seus leitores, que envelhecem e nunca voltam a ser jovens, as personagens ficcionais são, ao mesmo tempo, quem eram quando lemos as suas histórias pela primeira vez e quem se tornaram no decurso das nossas sucessivas leituras.» (p. 13)
A magia que advém das mais variadas personagens que o autor aqui revisita (Drácula, Alice, Super-Homem e Outros Amigos Literários como o subtítulo do livro sugere, onde não falta inclusivamente o Mandarim de Eça de Queirós) permite ainda o regresso ao nosso eu da infância ou da juventude de quando conhecemos estas personagens e as incorporámos. Ver artigo
Pode dizer-se de um livro que é claustrofóbico?
O livro História da Violência, publicado pela Elsinore, é uma narrativa de pendor autobiográfico em que Édouard Louis narra a violência de que foi vítima. Mas conforme a narrativa se reparte em múltiplas vozes – com a irmã de Édouard a contar ao marido a sua versão da história pontuada pelos seus apontamentos sobre o que pensa e sente em relação ao irmão, os polícias que tomam nota da queixa com o seu indisfarçado preconceito, os próprios apartes de Édouard que surgem aqui e ali entre parênteses, como se não fosse ele o narrador e autor, mas sim alguém que ao coligir uma série de fragmentos que compõem a versão oficial dos factos não consegue impedir a deixar os seus comentários – percebemos que este relato não é uma confissão mas quase uma carta de amor.
Édouard foi, lamentavelmente, uma vítima. Um jovem homossexual que foi abordado na rua por Reda, um estrangeiro sedutor que o ilude. Esta é a sua história de como uma noite de um amor fugaz entre dois homens estranhos se transforma num pesadelo, de uma noite de amor consentido, pelo menos no início, cujo acto se repete por várias vezes, se converte numa violação e numa violentação que deixa marcas. Mas, e é aí que o livro oprime, Édouard também se apaixona pelo seu agressor, nessa noite em que fizeram amor – é mesmo assim que o acto sexual é designado. Lê-se na contracapa do livro: «A história de Édouard é difícil, íntima e dolorosa; tanto que, sem espaço para devaneios da imaginação, lhe resta apenas o relato agitado, por vezes, implacável, daquilo que a realidade um dia lhe trouxe». Mas na verdade Édouard ilude-se. Ao ponto de inventar pedaços da história do homem que o violentou. De criar histórias que insere na infância do homem que lhe deu atenção naquele dia e que o fez sentir-se especial.
A narrativa de Édouard é narrada de forma honesta e crua, como uma confissão pessoal.
«Nessa noite, não percebia como é que a minha história podia já não me dizer respeito (isto é, que eu estava excluído da minha própria história e que, simultaneamente, estava incluído nela à força, uma vez que me obrigavam a falar ininterruptamente dela, isto é, que a inclusão era a condição da exclusão, que ambas eram uma coisa só (…), a história da qual já não tinha o direito de sair).» (p. 41)
Mas da mesma forma que a história de Édouard rapidamente lhe escapa, o relato do que lhe sucedeu converte-se num retrato da actualidade, em que explora o ódio racial e o mal-estar da França e da Europa de hoje. Porque Reda é cabila (argelino)…
«Mataram-no, foi uma agressão, um árabe estrangulou-o, foi estrangulado por um filho da puta de um árabe» (sempre a mesma tendência para chamar árabe a tudo o que se situa para lá da Espanha, incluindo os portugueses, os gregos e até os espanhóis)» (p. 134)
Releve-se a passagem em que o autor-narrador afirma a sua necessidade de uma clivagem social, de se demarcar da família (o que lembra Regresso a Reims, de Didier Eribon).
«Reda quis saber porque é que, com pouco mais de vinte anos, tinha deixado a família e sobretudo porque é que não passava o Natal com ela. (…) Respondi-lhe que para mim os estudos tinham sido para mim mais uma consequência da minha fuga. Que primeiro tinha fugido. Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente do meu passado. Podia tornar-me operário, como o meu irmão, numa fábrica a trezentos quilómetros de casa dos meus pais e nunca mais os ver; essa fuga seria parcial. A presença dos meus tios, dos meus irmãos ficaria em mim: o mesmo vocabulário, as mesmas expressões, os mesmos hábitos alimentares e de vestuário, os mesmos interesses e mais ou menos o mesmo modo de vida.» (p. 71)
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, França, em 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris. Venceu o Prémio Goncourt para Primeiro Romance com a publicação do seu livro de estreia, Acabar com Eddy Bellegueule (Fumo Editora, 2014 – actualmente esgotado), onde se unem o pendor autobiográfico confessional e a força do romance moderno.
Uma nota acerca da tradução ou revisão do livro: não deixa de ser estranho que a obra de estreia do autor seja mencionada neste romance (aparentemente escrita um mês antes), referindo-se o título original (pág. 82) sem qualquer alusão ao facto de haver edição do mesmo em Portugal. Ver artigo
Mesmo quando iniciamos a leitura de um livro em branco (leia-se in tabula rasa), como normalmente opto por fazer, há ainda assim uma certa expectativa subjacente, um horizonte que criamos mais ou menos involuntariamente e talvez até de modo inconsciente. Pelo título apenas presumi que se tratasse de um romance biográfico que desse conta do processo de escrita de Frankenstein, um dos livros que mais me marcou na adolescência. A narrativa inicia justamente com um cenário idilíco e uma prosa lírica, quando Mary Shelley caminha nua nas margens do Lago de Genebra em 1816. Contudo, no capítulo seguinte, num Reino Unido pós-Brexit, encontramos Ry Shelley, um médico, numa espécie de convenção ou feira de robótica, que pretende estudar de que forma os robôs afectarão a saúde mental e física dos humanos. Ao longo do livro, as duas histórias alternam, e as personagens de uma época encarnam noutra.
Este romance pretende romper com as convenções, ao mesmo tempo que intenta uma crítica mordaz, divertida, ao limiar da realidade que conhecemos, num mundo que se aproxima cada vez mais do imprevisível. Victor Stein (que partilha o nome do médico do clássico de Mary Shelley), é um investigador da Inteligência Artificial; Ry Shelly, outrora mulher, é um médico transgénero, que fornece partes de corpos humanos a Victor, com quem se envolve numa relação amorosa e sexual que não se pretende classificar; Ron Lord, um empresário que tem em mente criar uma inovadora gama de sex dolls; Polly D, uma jornalista em busca de um furo; e Claire, uma cristã evangélica que consegue ver no trabalho de Victor algo de religioso.
É muito particularmente em Ry que parece recair a simpatia da autora, um transgénero que pode aliás ser tomando como transhumano: «Não sou muito alto, com 1,72 metros. A minha constituição é magra. Tenho ancas estreitas e pernas compridas. Quando fiz a mastectomia, não havia muito a remover, e as hormonas já me tinham alterado o peito. Gosto do meu peito como o tenho agora: forte, suave, plano. Uso o cabelo puxado para trás num rabo-de-cavalo, como um poeta do século XVIII. Quando me olho ao espelho, vejo alguém que reconheço. Foi por isso que escolhi não fazer a cirurgia genital. Sou aquilo que sou, mas aquilo que sou não é uma só coisa, um só género. Vivo com a duplicidade.» (p. 84)
Jeanette Winterson entretece neste livro diversas questões actuais, cada uma por si só suficientemente problemática e passível de se ramificar em diversas perguntas existenciais, mas sem querer deter-se demasiado para as aprofundar. A autora pretende sim brincar com este admirável mundo novo onde homens e mulheres preferem robôs que fazem a vez de brinquedos sexuais e de parceiros perfeitos; em que o alcance da imortalidade é uma possibilidade, como em Frankenstein, através da criogenética ou com um simples download dos nossos cérebros para uma cópia de segurança que sobreviva ao nosso corpo e permita um futuro upload num corpo de carbono; em que uma mulher consegue alterar a sua biologia e transformar-se num homem; onde a incerta perfeição da Inteligência Artificial não será, ainda assim, pior que a inteligência humana, até porque num mundo pós-humano, a inteligência artificial vence a raça humana, pois por não ser sentimental tende para os melhores resultados possíveis (p. 71).
«Li hoje que os seres humanos dizimaram 60 por cento da vida selvagem desde 1970. No Brasil, temos um ditador a fazer-se passar por presidente democraticamente eleito que está a abrir a Amazónia aos interesses comerciais. Os seres humanos não têm mesmo melhor hipótese do que a IA. É demasiado tarde para outras opções.» (p. 232)
Contudo, um leitor atento consegue perceber que a narrativa se contradiz, e daí a sua complexidade ou não fosse este livro também uma paródia, pois noutra passagem Victor proclama, numa declaração de amor a Ry, que «Os seres humanos evoluíram. Estão a evoluir. A única diferença, aqui, é que estamos a pensar e a desenhar uma parte da nossa própria evolução. Deixámos de esperar pela Mãe Natureza. Temos todos de crescer. Não é a sobrevivência do mais apto – é a sobrevivência do mais esperto. Nós somos os mais espertos. Nenhuma outra espécie é capaz de interferir com o seu destino.» (p. 140)
Voltando à história de amor entre Victor e Ry, uma pequena nota sobre a tradução do livro. Intitulado, no original, Frankissstein: A Love Story, a Elsinore optou por simplesmente suprimir o subtítulo. É certo que este pouco parece acrescentar, mas se olharmos o grafismo do título, quer no original, quer na capa da tradução portuguesa, com o jogo de cores, percebemos que este contém também um jogo de palavras, pois podemos separá-lo em 3 palavras: Frank kiss Stein. Ver artigo
«Naquela manhã, ao acordar, Jim Sams, esperto, mas algo leviano, depois de uma noite cheia de sonhos perturbadores, viu-se transformado numa criatura gigantesca.» (p. 11)
No início de A Barata, de Ian McEwan, publicado pela Gradiva, com tradução de Maria do Carmo Figueira, é possível reconhecer o início de A Metamorfose, de Kafka. Um texto breve, quase uma novela, que parece responder aos mais recentes acontecimentos de um Reino Unido que decidiu apartar-se da União Europeia. E, para que não restem dúvidas, Jim Sams, o nome do protagonista, faz eco do de Gregor Sams. Mas se a obra de Kafka se caracteriza pela alegoria que faz uso do fantástico, em A Barata impera uma sátira em que tudo é inversão, numa espécie de parábola que pretende ilustrar como o mundo está de pernas para o ar – um pouco como Jim Sams se sente quando acorda, deitado de costas durante um bom tempo, enquanto contempla horrorizado os únicos quatro membros que lhe restam e sente saudades das suas perninhas castanhas. Conforme se vai familiarizando com a sua nova e repugnante aparência humana, sempre a partir da sua perspectiva de barata (capaz de lembrar ainda o gosto das moscas varejeiras), Jim Sams vai recordando fragmentos daquela que é a causa, a missão, que o trouxe do mundo dos insectos e, além dele, outros mais, com que o primeiro-ministro se vai cruzando e que consegue reconhecer de forma algo instintiva.
«Foi durante esses segundos, enquanto fitava o olhar brando de Trevor Gott, o chanceler do ducado de Lancaster, depois o ministro da Administração Interna, o procurador-geral, o líder da bancada, o ministro dos Transportes, o ministro sem pasta, que, num momento surpreendente de reconhecimento instantâneo, uma alegria inusitada, transformadora, transcendente, percorreu todo o seu corpo, passando pelo coração e descendo pela espinha. (…) Praticamente todos os membros do seu Conselho de Ministros partilhavam as suas convicções. Mas, muito mais importante do que isso, e só nesse momento o soubera, partilhavam as suas origens.» (p. 30)
O que estes insectos recentemente convertidos em políticos, de modo a cumprir uma missão em nome do povo, procuram decidir não é o Brexit, mas sim o florescimento de uma economia regressista e que deve ser implementada já no dia 25 de Dezembro, dia em que o comércio está fechado. O autor detém-se com algum cuidado na teoria do regressismo (a ideia não é totalmente nova), procurando explicá-la desde as suas origens, sendo que este consiste na inversão do fluxo do dinheiro. Em suma, a economia será estimulada com o cunho de mais moeda para que as lojas possam pagar aos seus clientes, e os clientes possam pagar pelos seus empregos, da mesma forma que os funcionários pagam um salário para que lhes seja permitido trabalhar, e quanto mais investirem em formação melhor, pois permitir-lhe-á encontrar um trabalho mais dispendioso, pelo que mais compras terá de fazer para o pagar. A lei passa portanto a proibir a acumulação de poupanças, pois o dinheiro parado vence elevadas taxas de juro negativas, o que o reduzirá a nada, obrigando portanto as pessoas a investirem o seu tempo em lojas onde são generosamente compensadas por todos os artigos que conseguirem levar a preço de retalho.
A certa altura a chanceler alemã – que tal como o presidente francês (Sylvan Larousse) ou o presidente americano (Archie Tupper) também passa por esta sátira – pergunta a James Sams «Warum?» (Porquê?), ao que a única resposta possível é «porque sim» (p. 97).
Na narrativa de Ian McEwan esta tese de inversão do que é a ordem natural das coisas afigura-se como a verdadeira crítica a um país que está empenhado em se destruir, vogando contra a corrente mas determinado a servir o seu povo. O livro parece perder um pouco da sua irreverência e ímpeto iniciais, mas a ironia cáustica de Ian McEwan permanece incisiva numa história que se quer com final feliz: «Agora, a Grã-Bretanha estava entregue a si própria. O povo tinha falado. A genialidade do líder do nosso partido permitira o cumprimento do desejo do povo. O destino do povo estava nas mãos do povo. O regressismo tinha sido cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha estava sozinha!» (p. 106) Ver artigo
Na linha de A Civilização do Espetáculo, a Quetzal Editores publica um novo livro de não-ficção do autor peruano, Mario Vargas Llosa, que foi condecorado com o Nobel de Literatura em 2010, em que se alerta para os perigos da submissão intelectual, da negação da racionalidade e da importância da liberdade de pensar e questionar.
Mario Vargas Llosa esclarece que, não parecendo, este é um livro autobiográfico, pois nos 7 ensaios biográficos que constituem O Apelo da Tribo – sobre filósofos e pensadores como Adam Smith, José Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel – o autor descreve simultaneamente a sua história intelectual e política: «o percurso que me foi levando, desde a minha juventude impregnada de marxismo e de existencialismo sartriano ao liberalismo da minha maturidade, passando pela revalorização da democracia, para a qual me ajudaram as leituras de escritores como Albert Camus, George Orwell e Arthur Koestler» (p. 10). Depois, num processo intelectual que levou vários anos, o autor converte-se ao liberalismo, devido a «certas experiências políticas» e, sobretudo, às ideias dos 7 autores apresentados neste livro.
No contexto de um continente imerso em revoluções e conturbações, o autor descobriu a política logo aos 12 anos, com um golpe militar no Peru. Terminado o liceu, rejeita a Universidade Católica em detrimento de uma universidade pública e popular, insubmissa à ditadura militar, para poder filiar-se no Partido Comunista. Estuda marxismo em grupos clandestinos, mantém-se socialista, vive a Revolução Cubana, visita a URSS, até que ao mudar-se para Inglaterra depois dos finais dos anos sessenta, e viver de perto os 11 anos do governo de Margaret Thatcher, uma conservadora guiada por convicções profundamente liberais, Mario Vargas Llosa opta pelo liberalismo.
Nestes ensaios biográficos, de leitura acessível e aprazível, o autor aborda a obra destes pensadores, analisando os seus principais aspectos, pesando os prós e contras da sua filosofia, filtrando o pensamento destes com o seu cunho pessoal. Este é um livro essencial para o controverso cenário político que agora se vive, pois subjacente a esta obra está sobretudo o apelo de um liberalista (fazendo suas as palavras de Ortega Y Gasset) que invoca à necessidade de praticarmos a liberdade de pensamento e de livre escolha, num mundo que empurra, cada vez mais, o cidadão enquanto indivíduo para uma massa anódina: «o indivíduo tende cada vez mais a ser absorvido por conjuntos gregários aos quais cabe agora o protagonismo da vida pública, um fenómeno em que ele vê um retorno do primitivismo (o «apelo da tribo») e de certas formas de barbárie disfarçadas sob as vestes de modernidade.» (p. 74)
O autor traça aqui o risco avassalador de o leitor se deixar absorver por uma massa cuja acção é determinada pela influência da televisão, mas sobretudo da internet e das redes sociais, e que implicará a sua anulação e um retrocesso histórico para a civilização democrática, como acontece actualmente, por exemplo, com os nacionalismos emergentes na Europa: «O apelo da tribo, a atração daquela forma de existência em que o indivíduo, escravizando-se a uma religião, doutrina ou caudilho que assume a responsabilidade de dar resposta por ele a todos os problemas, evita o compromisso árduo da liberdade e a sua soberania de ser racional, toca, claramente, cordas íntimas do coração humano.» (p. 165) Ver artigo
Este pequeno belo romance inscreve-se na senda de obras como Siddhartha, de Herman Hesse, ou de outras mais recentes, como As Oito Montanhas, de Paolo Cognetti, ou O Amigo do Deserto, de Pablo d’Ors, enquanto apologia do despojamento, da solidão, da natureza como caminho da serenidade e do encontro com a verdade. Uma narrativa sóbria, contida, quase como uma sinfonia em monotom, onde se conta a vida de Andreas Egger, uma existência inteira que, sem ruído nem brilho, atravessa um século.
«Em criança, Andreas Egger nunca tinha gritado nem dado vivas. Aliás, só começara a falar propriamente dito quando entrara para a escola. A custo, arrecadara um punhado de palavras que, em ocasiões raras, recitava aleatoriamente. Falar significava chamar a atenção, o que nunca era uma boa coisa. Chegara à aldeia muito novinho, numa carruagem puxada por cavalos, no verão de 1902, vindo de uma povoação distante, para lá das montanhas. Quando o tiraram da carruagem, ficou parado, mudo, de olhos arregalados, observando, estupefacto, os cintilantes cumos brancos. Devia ter cerca de quatro anos, na altura» (p. 13)
Criado por um familiar distante, um agricultor que apenas acolhe a criança pela bolsa de notas que traz ao pescoço e o agride a despropósito com uma vara de avelaneira, Andreas tudo suporta de forma estóica, quase bovina, numa espécie de mutismo animal, sem nunca se queixar, sem nunca gritar, mesmo quando fica fisicamente marcado pelas sovas que sofre, que o deixam com uma perna torta e coxo. A resiliência de Egger, aliada à sua força física, permitem-lhe sobreviver à perda da única mulher que amou por breves e fugazes instantes, à guerra, à fúria das avalanches das montanhas alpinas, à chegada do progresso quando o vale é devassado por maquinaria para a construção de um teleférico.
Após o seu passeio de quase um século pela vida, Egger converter-se-á em guia da montanha: «Em vez de falar, preferia ouvir as pessoas, cujas conversas ofegantes lhe revelavam os segredos de outros destinos e opiniões. As pessoas iam às montanhas claramente em busca de algo que acreditavam ter perdido havia muito tempo. Ele nunca conseguiu perceber ao certo o que era, mas, ao longo dos anos, foi-se convencendo de que os turistas avançavam pela montanha fora, não tanto atrás dele, mas atrás de um qualquer anseio obscuro e insaciável.» (p. 92)
Publicado pela Porto Editora, Uma Vida Inteira, de Robert Seethaler, foi Livro do Ano em 2014 na Alemanha onde vendeu mais de um milhão de exemplares, foi finalista do Man Booker International em 2016 e do International Dublin Award em 2017. Ver artigo
Se o disseres na montanha foi o romance de estreia de James Baldwin, publicado em 1953 e só agora traduzido por Isabel Lucas e publicado entre nós pela Alfaguara. O autor nasceu em 1924 em Nova Iorque, cresceu no bairro de Harlem, e viajou para Paris em busca de liberdade para se poder encontrar como homem negro e homossexual.
A narrativa centra-se no dia do décimo quarto aniversário de John Grimes, dia em que se cumpre também o vaticínio de que John um dia quando crescesse seria pregador tal como o seu pai (na verdade, o padrasto), que lhe diz ser feio, o mais baixo da turma, o rapaz que não tem amigos.
«A John, que se destacava na escola – mas não em matemática nem em basquetebol, como Elisha -, foi dito que teria um grande futuro. Que poderia tornar-se o Grande Líder do Povo de Deus. John não estava assim tão interessado no seu povo e menos ainda em liderá-lo no que quer que fosse, mas a frase tantas vezes repetida surgiu na sua mente como um grande portão de ferro que se abre para ele e dá para um mundo onde as pessoas não viviam na escuridão do pai (…)» (p. 22)
Na manhã de um sábado de Março, em 1935, John reflecte na admoestação pública que o seu amigo Elisha e Ella Mae receberam num sermão de domingo, acusados de corporizarem o pecado entre a congregação. No momento dessa denúncia pública termina a possibilidade de estes dois jovens continuarem a encontrar-se, ainda que de forma inocente, a não ser um dia mais tarde ao abrigo do casamento, para terem filhos e educá-los na igreja. E é também nesse domingo, dias antes do seu aniversário, que «John percebeu que aquela era a vida que o esperava – que teve realmente consciência de alguma coisa não muito distante, mas iminente, a aproximar-se de dia para dia» (p. 20).
Inspirada na sua própria vida, esta história retrata a luta interior de um jovem que teme e odeia o padrasto, ele próprio um homem imperfeito e violento, enquanto simultaneamente o encara como um modelo a seguir. Aliado a esse dilema, persiste ainda outra clivagem maior, um segredo ainda inominável mas que é já perceptível ao longo deste romance, mas que apenas irrompe numa outra obra do autor, que será publicada ainda neste ano de 2020 pela Alfaguara – O Quarto de Giovanni. Nunca é expresso de forma absoluta e incontornável, mas ao longo deste livro, especialmente na primeira parte, mais centrada na perspectiva de John, os indícios homoeróticos na relação entre John e Elisha são vários. John pensa em Elisha «que era alto e belo, que jogava basquetebol e que aos onze anos tinha sido salvo das impensáveis plantações do Sul» (p. 20). John assume que pecou. «Apesar dos santos, do pai e da mãe, dos avisos que ouviu desde o princípio dos seus dias. Pecara com as suas mãos um pecado difícil de perdoar. Na casa de banho da escola, a pensar em rapazes, mais velhos, maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer em si uma transformação de que não se atrevia a falar.» (p. 21) Porém, a par da consciência de John do pecado que o marca, e que o diminui aos olhos dos outros, em particular do padrasto, reside também em si a percepção de que se demarca dos outros por motivos diferentes, como aconteceu um dia quando aos 5 anos a directora da escola vê a sua caligrafia no quadro e lhe diz «És um rapaz muito esperto, John Grimes» (p. 23)
Um rapaz esperto num mundo de brancos, em que para combater a injustiça, como a falsa acusação que recai sobre Richard, o verdadeiro pai de John, Elizabeth, a sua mãe, mantinha «a cabeça levantada, o olhar em frente e sentia a pele assentar sobre os ossos como se usasse uma máscara» (p. 189).
«Olhou para as ruas calmas e soalheiras e, pela primeira vez na vida, odiou aquilo tudo – a cidade branca, o mundo branco. Naquele dia, não foi capaz de pensar numa única pessoa decente no mundo inteiro. Sentou-se ali e esperou que um dia Deus, através de torturas inconcebíveis, os levasse à humilhação total e lhes fizesse saber que os rapazes negros e as raparigas negras, que tratavam com tanta condescendência, tanto desdém, e tão bom humor, tinham corações como os seres humanos, corações mais humanos do que os deles.» (p. 193)
Um mundo fechado, em que um homem não pode fugir ao isolamento e à diferença que a cor da sua pele lhe impõe, John carrega ainda essa outra cruz, a de amar o seu semelhante.
Go tell it on the mountain é o nome de uma música gospel, sobre o nascimento de Cristo, aqui possivelmente associada à conversão de John, ao seu renascimento em Cristo. E como é próprio de um sermão, como o Sermão da Montanha que disserta sobre os valores e princípios de uma vida cristã, a prosa de James Baldwin entretece simbolismo e lirismo. E, neste caso, a fúria sexual de um jovem a desabrochar é temperada pelo erotismo da sublimação do desejo. Ver artigo
Voar no Quarto Escuro parece ter começado como um livro de contos. Conta a história de Eduarda, uma viúva que se casa segunda vez como forma de refazer a vida, a sua e a da filha de 11 anos. Alice, que prepara o funeral da mãe e procura esconder desejos que há muito se tornaram óbvios. Celeste, que gosta de ser admirada, por homens e por mulheres, mas prefere manter-se à distância. Catarina, que coloca no afã da limpeza e do desvelo pelo senhor Antero um chamamento de amor não-correspondido. Adelaide, a médica que recorre ao prostituto de vinte anos para encontrar a intimidade que o marido lhe nega. Ema, a mulher de poder que gera uma criança morta, prenúncio de um casamento em ruína. Beatriz, dilacerada entre o não-sentir dos antidepressivos e a necessidade de sentir demasiado para poder escrever. Célia, a ama e testemunha de um casamento de revista entre duas vidas desencontradas. Cada trecho narrativo corresponde a uma personagem feminina. Cada texto designado pelo nome da personagem central. Mas Voar no Quarto Escuro, romance de estreia de Márcia Balsas, publicado pela Minotauro, não é um livro de contos. Assim o acusa o encadeamento temporal entre as micronarrativas que se complementam e iluminam reciprocamente, refractando a realidade destas mulheres a partir de várias perspectivas; os nomes que começam a transitar de capítulo para capítulo; a forma como gradualmente na narrativa de uma das personagens se faz ouvir a voz de outra das oito mulheres, como se a narrativa começasse a oscilar entre a multitude de personagens e admitisse a impossibilidade de continuar a prender cada história num espaço estanque. Um romance que tem muito pouco de romântico, pois as relações interpessoais entre mulheres e homens são sempre desencontradas, áridas, impessoais. Até a relação meramente transaccional de Adelaide, talvez a personagem mais central de todas as oito, chega ao fim quando o jovem prostituto parece envolver-se amorosamente com o marido de outra das personagens. E quando há espaço para um canto de amor, este subsume-se a uma breve passagem quando Celeste sente que pode vir a apaixonar-se por Alice: «talvez prefira as mulheres, é maior a cumplicidade partilhada, os carinhos são mais compensadores, há uma meiguice que o corpo do homem não consegue dar» (p. 68).
A unir estas mulheres atravessa-se uma vida de solidão, de dor psicológica e física, de silente desespero, em que o final enigmático do primeiro capítulo sobre Eduarda pode simbolizar o catalisador que desencadeia uma reacção em cadeia na vida de todas estas mulheres, cujas vidas se tocam sem elas sequer o sentirem. Entre o clarão de um relâmpago e o disparo de uma bala, a morte de Eduarda, vítima de violência doméstica, e do seu agressor, no que se afigura um acto divino, pode revelar-se o fim de uma era de submissão e de convencionalismos mudos e simbolizar o sacrifício salvífico das vidas destas mulheres que restam para contar aquela que é também a sua história. Talvez nem todas as oito mulheres, Eduarda inclusive, consigam alcançar a salvação. Muitas vezes sentindo-se invisíveis, outras vezes transparentes, como uma «mulher-vidro» (p. 21), cada uma destas mães, filhas, amigas, colegas, amantes, profissionais, carrega a sua própria cruz e o seu segredo. Contudo, cada história é única e por isso não há aqui lugar nem sequer para o conforto de uma irmandade partilhada: «Poderá haver paralelismos nas suas vidas, pensa Adelaide, mas nenhuma se sente melhor por o ter percebido (…). Não há utilidade nessa informação, mais uma coincidência escusada. Noutras alturas, seria uma bandeira a perseguir, a amizade que teria de nascer, apenas por acreditar nessas inevitabilidades. Agora, inevitabilidade é outra coisa, para ela. É deixar correr, como o tempo» (p. 135).
Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977, autora do blogue literário Planeta Márcia, e venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto «Ponto de Fuga». Ver artigo
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