Deus ajude a criança conta a história, em modo alternado, de diversas personagens: Sweetness, a mãe que dá à luz uma criança negra como a noite; Lula Ann, que passa a adoptar o nome Bride, talvez por melhor condizer com a sua nova identidade; Booker, o namorado, que perdeu o irmão poucos anos mais velho ainda em criança, depois de o seu próprio gémeo ter nascido morto; Rain, uma criança de cor clara, que era prostituída pela própria mãe ainda em criança, depois expulsa de casa, e ser mais tarde resgatada por um casal.
A unir estas personagens está uma infância sofrida que pode deixar danos irreparáveis que as condenam a uma vida irreconciliável com a dádiva do amor ou a confiança da partilha. Lula Ann nasce com tez pálida como qualquer criança, mas de súbito a sua pele passa a um tom preto-azulado de forma tão inexplicável que a mãe, ironicamente chamada de Sweetness, quase a sufoca e o pai acaba por as abandonar. A partir daí a infância de Lula Ann é tão dolorosa que ela chega a desejar que a mãe a agrida apenas para poder sentir o seu toque, até que certo dia, para poder conhecer o amor que a mãe sempre lhe negou, vai ao ponto de mentir e arruinar a vida de uma pessoa apenas para conseguir que a mãe a olhe com orgulho e a segure pela mão, como quem a toca pela primeira vez. Bride, que assim decide passar a chamar-se, talvez por aprender a deixar de ter vergonha da sua cor e evidenciá-la ainda mais ao apenas vestir em tons de branco, tal como uma noiva, é agora uma mulher bem-sucedida, com a sua marca de cosmética. Mas o seu desejo de experienciar o amor mantém-se tão avassalador que ela dá por si a transformar-se, como quem encolhe, num ensejo de regressar à infância.
Deus ajude a criança não será certamente a obra mais emblemática de Toni Morrison, autora afro-americana nascida em 1931 no Ohio, a par de obras como Beloved (Amada), Tar Baby ou Song of Solomon, mas foi a sua última obra publicada em 2015 e traduzida e editada entre nós pela Editorial Presença logo no ano seguinte. Uma obra que mereceu críticas díspares, como a de que as personagens não tinham verdadeiramente densidade psicológica. Mas é, ainda assim, uma obra acima da média, sobre como a mácula da infância nos pode perseguir em adultos ou mesmo para toda a vida, onde ressoam ecos do realismo mágico ou fantástico da sua obra-prima Beloved, em torno da personagem Bride. Toni Morrison foi a primeira autora afro-americana a vencer o Prémio Nobel da Literatura em 1993, é sobejamente distinguida e aclamada, tendo recebido de Barack Obama a Presidential Medal of Freedom, a mais alta distinção civil dos Estados Unidos da América, e faleceu no passado dia 5 de Agosto, aos 88 anos, com uma obra que se distingue pela exaltação dos direitos humanos, nomeadamente sobre a condição de se ser mulher e de se ser negro/a.
«Desconfiava que a maioria das respostas autênticas relacionadas com a escravatura, linchamentos, trabalhos forçados, parcerias rurais, racismo, (…) trabalho na prisão, migração, direitos civis e movimentos de revolução negra se achavam todas ligadas ao dinheiro. Dinheiro retido, dinheiro roubado, dinheiro como poder, como guerra. Onde estava a palestra sobre como a escravatura catapultara sozinha o país inteiro da agricultura para a era industrial em duas décadas? O ódio dos brancos, a sua violência, era a gasolina que mantinha os motores do lucro a andar.» (p. 102)
O romance Beloved, vencedor do Pulitzer em 1988, foi adaptado ao cinema e conta com a interpretação de Oprah Winfrey e Danny Glover. Ver artigo
Olga conta a história de uma menina a partir do seu primeiro ano de idade, que se limita a absorver o interior da casa da vizinha que cuida de si em todos os seus pormenores, até que tendo visto o que havia para ver passa a subir para uma cadeira e a contemplar o mundo pela janela. Silenciosa e solitária, a menina filha de um estivador e de uma lavadeira aprenderá a ler a escrever com a vizinha ainda antes de ir para a escola e cedo se evidencia o seu gosto pela leitura. Quando uns anos mais tarde os pais morrem com tifo, com dez dias de intervalo, Olga será levada pela avó que a desaprova, da mesma forma que foi contra o casamento do filho com uma mulher eslava e que deu o seu nome próprio, igualmente eslavo, à filha. Mas cedo Olga evidencia a sua fibra ao rejeitar que a avó lhe troque o nome. Criada sem amor pela avó numa aldeia a leste do império alemão, num período incerto que se pressente como a viragem do século XIX, em que a própria Alemanha ainda tem as suas fronteiras por definir, Olga continua a evidenciar-se na escola, e mantém a sua curiosidade e admiração pelo mundo, isolando-se na orla da floresta a ler. Além dos livros, tem por companhia Herbert, filho do homem mais rico da aldeia, uma criança que assim que deu os primeiros passos começou a correr, não sabendo mover-se pelo mundo de outra forma, com a ânsia de descobrir com os seus próprios passos aquilo que Olga explora pela leitura. Mas com o tempo as diferenças entre Herbert, a irmã Viktoria e Olga tornam-se mais declaradas, nomeadamente entre a ambição social de Viktoria e o sonho de Olga em continuar os seus estudos, porém impossibilitada pela sua condição de frequentar o magistério público. Até que as suas vidas tomam caminhos distintos. Se no início este romance parece ter algo de conto encantado, como condiz à narração da infância e juventude, o leitor dá depois por si a atravessar o século XX à medida que Olga prossegue com os seus sonhos, vislumbrando alternativas sem se deixar render às poucas oportunidades que a vida lhe dá como mulher e pobre, e Herbert continua a correr mundo, da Namíbia ao Pólo Norte, partilhando da febre expansionista alemã das primeiras grandes explorações pela vastidão de lugares inóspitos e longínquos, numa Alemanha em constante mudança, conforme o império dá lugar à República de Weimar e depois à ascensão dos sociais-democratas, até que deflagra a guerra, e a vida de Olga continua a encaminhar-se por desvios tortuosos.
Em tom nostálgico e límpido, a prosa de Bernhard Schlink mantém-se apaixonante, neste romance publicado pelas Edições ASA, numa magnífica viagem pela Alemanha do século XX que se entrelaça magistralmente com a história desta mãe-coragem que é Olga.
Bernhard Schlink nasceu em 1944 em Bielefeld. Jurista de formação, juiz, professor de Direito Público e de Filosofia do Direito numa universidade em Berlim, é mais conhecido, entre nós, como autor de O Leitor, adaptado ao cinema e que conferiu a Kate Winslet o Óscar de melhor actriz. Ver artigo
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