Cerca de um ano depois da publicação de Semente de Bruxa, em que Margaret Atwood recria a peça A Tempestade, sai agora a recriação de O Rei Lear. A série Bertrand Shakespeare conta com um novo título num projecto lançado pela editora inglesa Hogarth, que chega a mais de 30 países e visa recriar em romance as peças do dramaturgo inglês.
A recriação daquela que é uma das mais aclamadas tragédias de Shakespeare é completamente livre e brilhantemente adaptada aos tempos modernos, em que o rei Lear é agora um multimilionário que dirige um grupo global de comunicações. O fôlego shakespeariano sente-se logo nas primeiras linhas do romance, em que as falas das duas personagens, Dunbar e Peter, um comediante alcoólico, se interpelam e atropelam, como numa peça de teatro, onde não falta o absurdo condizente a alguém que terá perdido o juízo, pois Henry Dunbar foi enclausurado pelas filhas numa casa de repouso. Florence, a Cordélia da peça original, é a filha mais nova e meia-irmã de Abby e Megan, que nunca pretendeu usurpar o trono ou o dinheiro do pai, mas que foi afastada por ele. Tal como Lear vagueia quase enlouquecido numa tempestade, também Dunbar enfrenta um nevão quando consegue juntar os resquícios de força que lhe restam e fugir da sua prisão para tentar recuperar o poder que as filhas planeiam usurpar-lhe na próxima reunião de administração, onde pretendem provar que o pai envelheceu e por conseguinte ensandeceu de vez.
Edward St Aubyn transmite de forma viva e actual os dilemas intrínsecos às tragédias de Shakespeare, dissecando o comportamento das personagens e tornando-as humanas, e não simples joguetes nas mãos dos deuses e das forças do destino: «Ergueu a jarra por cima da cabeça, pronto a lançá-la pela janela daquela prisão, mas foi então que ficou petrificado, incapaz de a partir ou pousar, com toda a acção anulada pela perfeita guerra civil entre omnipotência e impotência que lhe bloqueava o corpo e a mente.» (p. 20)
Não falta também um fino humor, especialmente quando Dunbar se encontra ainda na casa de repouso, como quando a enfermeira o conduz para a mesa comunal: «Enquanto ela o empurrava para aquele precipício de encontros sociais aleatórios, do qual ele tinha até então conseguido manter-se bem distante, Dunbar vislumbrou Peter (…), debaixo de um letreiro verde com as palavras Saída de Emergência ao lado de uma figura a sprintar que devia estar a tentar fugir ao inferno da agência de encontros românticos da enfermeira Roberts.» (p. 34)
Edward St Aubyn chega a recorrer, num jogo literário, a passagens retiradas da obra de Shakespeare – «sono que desenreda o novelo emaranhado das preocupações» (p. 92) – e tal como nas suas tragédias presenteia-nos com um desenlace abrupto que se abate como o destino num final inconcluso e infeliz.
Edward St Aubyn é considerado um dos melhores romancistas britânicos da sua geração e o seu quinteto «A Família Melrose», escrito entre 1996 e 2012, foi adaptado no ano passado a uma mini-série televisiva, de cinco episódios, intitulada Patrick Melrose, com Benedict Cumberbatch no principal papel. Ver artigo
Do escritor israelita David Grossman, autor de Um Cavalo Entra num Bar, vencedor do Prémio Internacional Man Booker em 2017, publicado pela Dom Quixote e já aqui apresentado, chega agora este livro de não-ficção em que se revisita e reinterpreta o mito bíblico de Sansão. Explica o autor no prólogo que «Há poucas histórias na Bíblia com tanto drama e ação, tanto fogo e artifício narrativo e emoção pura, como os que encontramos no conto de Sansão» (pág. 8).
David Grossman analisa a par e passo, isto é, frase a frase, o mito bíblico desse jovem gigante, musculado e de longos cabelos entrançados, numa análise que transcende o literário, uma vez que cruza História com emoção. O autor tão depressa nos contextualiza historica e culturalmente no fim do século XII, princípio do XI a. c., para nos conduzir através deste mito, como logo a seguir argumenta logicamente que a colmeia que surge no esqueleto do leão morto por Sansão teria de ter sido um ano depois, uma vez que as abelhas cujo olfacto é tão sensível nunca se aproximariam de uma carcaça… Mas nunca perde de vista o lado humano de Sansão, como se entrássemos afinal no campo do romance, despindo-o da figura insonsa de herói e revelando-o como um homem solitário e torturado, apresentando um jovem que afinal não era apenas musculado e incrivelmente forte, mas tinha alma de poeta e vivia um enigma inconciliável, entre cumprir o seu papel como salvador do povo israelita ou procurar viver com livre-arbítrio, podendo inclusivamente escolher apaixonar-se como qualquer homem vulgar. E neste caso, como qualquer outro homem, pela mulher errada: Dalila.
O autor ainda que trate um assunto sério, de forma profunda e bem fundamentada, mantém aqui uma ironia e um humor que lhe é característico, e que definiu aliás a sua obra já referida, Um Cavalo Entra num Bar, título tomado do início de uma série de piadas e que versa sobre um performer de stand-up comedy. Note-se a seguinte passagem: «Mas qualquer pessoa familiarizada com a semiótica da narração de histórias bíblicas sabe que a simples menção de uma mulher estéril quase sempre pressagia um nascimento de grande importância.» (p. 10)
Aconselha-se a começar a leitura do livro pelo fim, pois a editora Elsinore teve o bom-senso de incluir um Anexo com as passagens bíblicas referentes a Sansão, contidas nos capítulos 13 a 16 do Livro dos Juízes.
O Mel do Leão – O Mito de Sansão ficou disponível ao público nas livrarias portuguesas esta segunda-feira, dia 21, numa tradução e edição da Elsinore e augura uma série de lançamentos promissores. Ver artigo
O mais recente livro de Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, publicado pela Relógio d’Água, em Setembro de 2018, é um poema em forma de narrativa, conforme à prosa poética a que a autora nos tem habituado, e com a respiração de um poema épico. O leitor sente-se perdido tacteando um horizonte de referência, quer no espaço quer no tempo, enquanto tenta situar a narrativa no género da ficção científica, ou da fábula, ou de um mito do princípio dos tempos, mas a história deste povo que atravessa o deserto em busca de uma Europa foge a qualquer classificação. Este grupo pode ser confundido com os migrantes que chegam em vagas provindos de África ou do Médio Oriente, tanto no tempo presente como outrora. Nessa travessia em busca de uma esperança as mulheres e os homens vão-se transformando. E num livro que nos fala de guerra mas também de amor e de sabedoria, o leitor é embalado pela coreografia desenhada nos movimentos das personagens e seduzido pelo ritmo da escrita de um poema que se vai desenrolando como uma serpente a rastrear as areias do tempo.
Hélia Correia é uma autora que aparece muito pouco mas foi possível conversar com ela em Sintra, no início deste ano. Ver artigo
Amos Oz, aclamado escritor israelita, faleceu no dia 28 de Dezembro de 2018, aos 79 anos de idade, vítima de cancro.
Oz nasceu em Jerusalém em 1939 e foi criado num kibbutz, uma comunidade em Israel dedicada à agricultura, baseada no trabalho colectivo e na assistência mútua. No livro Entre Amigos, apresentado no Postal do Algarve em Outubro de 2017, o autor revisitava justamente esse espaço onde começou a escrever, fazendo de um kibutz, nos anos 50, a verdadeira personagem principal desse livro.
Caros Fanáticos não é um livro de ficção, como aliás se percebe logo pela indicação na capa do subtítulo: «Fé, fanatismo e convivência no século XXI». Esta obra é uma compilação de três ensaios. Dedicada aos netos do autor, representa, muito oportunamente, uma reflexão dos actuais tempos conturbados, em que vagas de migrantes chegam à Europa, sem que se saiba bem como acolhê-los. O autor aborda temas sensíveis como o perigo do fanatismo fundamentalista ou a procura de uma solução para o conflito entre Israel e Palestina, propondo a existência de dois estados. Temas estes tão antigos como a História mas ainda profundamente actuais, sendo que o primeiro dos três ensaios, que dá nome ao livro, resulta aliás de uma série de conferências proferidas numa universidade na Alemanha, em 2002, em que o autor reflecte com ironia, mordacidade e inclusive um certo humor negro os riscos da intolerância e da cegueira religiosa: «A guerra em questão é uma guerra entre fanáticos convencidos de que os seus objectivos santificam todos os meios e todos os outros, para os quais a vida é um objectivo e não um meio.» (p. 16)
Oz, o escritor israelita mais conhecido e lido no mundo, cumpriu serviço militar na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e na Guerra do Yom Kippur, em 1973, antes de realizar os seus estudos universitários. Foi jornalista, professor universitário de Literatura, activista político e militante a favor da paz entre os estados da Palestina e Israel.
Em Portugal, a sua obra tem sido publicada pela D. Quixote, com títulos como A Caixa Negra, Não Chames à Noite Noite, Uma História de Amor e Trevas e Judas. O livro Uma História de Amor e Trevas é de inspiração autobiográfica e foi adaptado ao cinema, com interpretação de Natalie Portman. Caros Fanáticos foi o mais recente livro do autor a ser publicado pela editora D. Quixote. Ver artigo
Jonathan Littell nasceu em Nova Iorque em 1967, cresceu nos Estados Unidos da América e em França, vivendo actualmente em Espanha. Venceu o Prémio Goncourt e o Grande Prémio do Romance da Academia Francesa com As Benevolentes, denso e imenso romance escrito em francês e publicado pela Dom Quixote em 2007. É ainda autor de diversas obras de não-ficção, sendo este Uma História Antiga o tão aguardado regresso do autor à ficção, igualmente publicado pela Dom Quixote.
Este romance parte, contudo, e daí o subtítulo Nova Versão, de uma sua novela publicada com o mesmo título em França em 2012, desenvolvendo e aprofundando neste romance ideias aí contidas.
Um narrador, em corpo de homem, sai de uma piscina, troca de roupa e começa a correr, até dar por si num novo cenário, semi-familiar, semi-desconhecido. Ao longo dos sete capítulos do livro, a narrativa estende-se com uma natureza obsessiva, com ecos e imagens que se tornam recorrentes. Uma escrita gráfica, que parece não esquecer nenhuma das mais diversas experiências sexuais, ricamente descritas, uma narrativa quase sem espaço para a ternura, onde também participa a violência, enquanto este narrador na primeira pessoa se desdobra em múltiplos eus e representa diversos papéis como quem veste a condição humana: ora mãe, ora prostituta, ora homem, ora andrógino.
É possível que a natureza do romance, labiríntico, não permita uma leitura de um fôlego só. Tal como o narrador, o leitor dá por si perdido em corredores e espaços que se desdobram invariavelmente de maneira idêntica, enquanto este narrador, ora num corpo de homem ora num corpo de mulher, ora adulto, ora criança, tacteia uma saída, apenas para se reencontrar num novo cenário moderno, invariavelmente cinzento, como a própria roupa que veste, enquanto vivencia situações que variam entre o doméstico e o orgíaco. Ver artigo
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