A Devastação do Silêncio (Elsinore) é o mais recente romance de João Reis, publicado no dia 16 de Abril, com ilustrações de Lord Mantraste, que tão bem acentuam a crueza e a ironia deste livro.
Afirmava alguém que muitos escritores da nova geração não parecem ter memória do 25 de Abril (até porque não o viveram) nem reconhecer a importância desse momento de cisão, do mesmo modo que alguns destes autores optam por situar as suas narrativas num cenário universal e anódino, sem nada que o torne especificamente português.
Parece sincronia esta coincidência entre a publicação do livro e a efeméride dos cem anos decorridos desde a Batalha de La Lys, em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado. O autor recorda aqui a história de um tio-bisavô, soldado prisioneiro num campo de prisioneiros alemão, durante a Primeira Guerra, sem documentos que o confirmem como oficial, pois foram-lhe roubados, obrigado a partilhar as miseráveis condições de vida dos restantes soldados. O protagonista terá sido «engenheiro na vida civil» (p. 42), estudou em França, e nasceu com uma assimetria corporal do ombro para baixo, o que lhe valeu dispensa, sendo alistado como engenheiro militar, e depois promovido a oficial e a capitão. A sua história é uma vez mais narrada na primeira pessoa, dando a conhecer a Guerra não nos grandes acontecimentos (e mortandades) mas pelo tédio, pela rotina, pela fome e pela pouca higiene: «os piolhos saltavam-lhe do cabelo… estava cheio deles, atafulhado… os outros homens pouco se importavam, pois se não fossem os piolhos, eram os carrapatos, mais sangue, menos sangue… ali, eram essas as batalhas que nos restavam.» (p. 20)
Os prisioneiros morrem não da guerra, mas da doença: «a doença alastrava pelo campo, a tuberculose e a pneumonia matavam-nos aos poucos, no inverno anterior, os romenos haviam morrido às dezenas por conta da gripe (…), os romenos morreram às pazadas, era o que se dizia, que tinham perecido às centenas com disenteria, decerto propagavam-se também todos os géneros de pestilências labiais e linguais… pústulas… carne viva… lacerações…» (p. 22).
Um livro negro, como o primeiro, sarcástico, com laivos grotescos, condizentes à realidade descrita, sem dourados nem subtilezas, mas ainda assim com um fino humor e ironia: «a guerra traria o derradeiro estádio civilizacional dos respectivos povos (…), mais alguns anos e desenvolveríamos guelras e barbatanas» (p. 96).
A narrativa alterna entre um presente, em que o protagonista se encontra com alguém a uma mesa de café – e por isso sabemos que sobreviverá -, enquanto se discute uma gravação com a sua voz. A narrativa é assim um trabalho de rememoração, por vezes com carácter metaficcional. Note-se como o oficial invoca constantemente a necessidade do silêncio – que terá sido aliás a sua melhor arma e garante de sobrevivência durante a guerra: «é preferível manter a ambiguidade, a incerteza, trata-se de uma técnica que utilizei ao longo da vida com enorme proveito» (p. 95). Ao mesmo tempo que invoca a constante vontade em escrever sobre aquilo que testemunha, mas sem papel onde assentar o seu depoimento: «Queria escrever, anotar aquilo em que pensava, o que acontecera no campo nesse dia, decidi não escrever, faltava-me o papel e era inútil, uma perda de tempo, portanto pus-me então à escuta de pássaros» (p. 25).
Português prisioneiro num campo alemão, cria-se também a possibilidade de perspectivar o soldado luso a partir do outro, enquanto simultaneamente se traça uma reflexão acerca desse outro: «Os alemães dedicam-se à ponderação, levantam dúvidas curiosíssimas, é impossível alcançar um tal ponto de civilização nos nossos penhascos e barrancos…» (p. 90) Ver artigo
Claudio Magris, autor de Danúbio, nasceu em 1939 em Trieste, que é aliás o cenário de vários destes textos que podem ser lidos como crónicas.
Budapeste, Nova Iorque, Estocolmo, Berlim ou Istambul, são o palco de pequenas situações a partir dos quais o autor passa a tecer breves considerações e reflexões, que colocam em causa assuntos tão díspares como a natureza da guerra, a economia, o multiculturalismo, ou a diferença entre “andar com” e “estar com” alguém.
Seja num comboio, numa esplanada, ou num cemitério, estes instantâneos captados pelo autor podem ainda ser lidos como momentos de clareza, rasgões na tela de um fresco que subitamente permitem ler e entender algo maior sob a superfície do quotidiano: «O instantâneo é um ecrã de televisão, graças ao qual finalmente compreendo como é que tantos bancos podem ter sido tão imprevidentes e caminhado alegremente para a ruína.» (p. 53)
Este livro, designado na contracapa como «uma pequena comédia humana» reúne um conjunto de instantâneos, imagens apreendidas numa fracção de segundos que são depois dissecadas pelo vaguear imaginativo e filosófico do autor. São 38 textos breves e pessoais, com duas a quatro páginas cada, organizados em sequência cronológica, entre os anos de 1999 e 2016. E nem de propósito termina com o instantâneo intitulado «Selfie». É óbvia a capacidade imaginativa do autor, que nos deixa a interrogar até que ponto as cenas descritas não serão plena criação. Destacam-se, na minha leitura, a cena do casal numa esplanada de café, ambos focados nos seus telemóveis, cuja intimidade é devassada pelo olhar arguto do autor, em «Cenas mudas de um casamento», ou o instantâneo «Leão-marinho» em que um homem casado desafia um grupo de adolescentes para depois lamentar a liberdade perdida da juventude.
Este pequeno livro com formato de bolso e capa dura é a companhia perfeita para abrir num café ou numa esplanada, e ler um instantâneo que nos ajude também a abrir os olhos para o real envolvente. Além de ter uma particularidade interessante, pois basta despir o livro da sobrecapa para deixar na ignorância os mais curiosos que gostam de tirar “instantâneos” dos livros que os colegas transeuntes lêem nos transportes públicos ou numa sala de espera: a capa negra sem letras gravadas acentua o mistério e evita que os leitores mais púdicos tenham de forrar os livros… Ver artigo
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