Pamuk nasceu em 1952, estudou Arquitectura e depois Jornalismo, sem nunca exercer. Dedicou-se à escrita desde os 23 anos e as suas obras têm constituído sempre êxitos de vendas no seu país. É o autor turco mais galardoado, apesar do seu criticismo face à política turca, a nível nacional e internacional, já distinguido com o IMPAC, e foi finalista do Man International Book Prize 2016 com este romance.
Neste Uma estranheza em mim o autor centra-se numa personagem-símbolo de modo a traçar um profundo retrato pessoal – note-se a primeira pessoa do título – de Istambul e das suas profundas mudanças entre 1969 e 2012. Um título alternativo a este livro será: «Ou as aventuras e sonhos de Mevlut Karatas, vendedor de boza, e dos seus amigos, e também um retrato da vida em Istambul entre 1969 e 2012 de muitos pontos de vista diferentes.», o que indicia a ambição deste romance, que levou 6 anos a ser escrito (2008-2014), com uma estrutura cuidada – dividido em VII partes, sendo as partes III, IV e V arrumadas em diversos capítulos – , onde todas as partes têm epígrafes, os capítulos possuem um título ilustrativo do seu conteúdo e uma citação contida nas páginas que se seguem, havendo ainda o cuidado de incluir uma árvore genealógica, um índice de personagens e uma cronologia histórica.
A narrativa inicia-se com Mevlut, nascido em 1957, quando aos 12 anos de idade é levado pelo pai, um vendedor ambulante de iogurte, para Istambul, a «capital do mundo», onde ficará a viver, longe da aldeia onde ficam a mãe e as irmãs. O «nosso herói» é «alto, de compleição robusta, apesar de delicada, e bem-apessoado. Tinha um rosto de rapaz, cabelo castanho-claro e olhos vivos e inteligentes, uma combinação que despertava não poucos sentimentos de ternura entre as mulheres» (p. 19). Não é por acaso que citamos esta descrição de Mevlut, então com 12 anos, pois é também esta beleza que lhe irá abrir algumas portas na vida ou pelo menos a porta para os corações de algumas pessoas com quem se irá cruzar no seu percurso. O autor assume-se como a voz narratorial e, adoptando um tom coloquial e íntimo para com o leitor, anuncia algumas pistas de leitura logo na primeira página: «Este ar arrapazado, que Mevlut manteve até estar bem entrado nos quarenta, e o efeito dele sobre as mulheres eram dois dos seus traços essenciais e valerá a pena eu recordá-los de vez em quando aos leitores para ajudar a explicar alguns aspetos da história. Quanto ao otimismo e boa vontade de Mevlut – a que alguns chamariam ingenuidade –, estes traços não será necessário lembrá-los, já que vão ser manifestos do princípio ao fim. Se os meus leitores tivessem conhecido realmente Mevlut, como eu conheci, (…) saberiam que não estou a exagerar só para fazer efeito. Na verdade, gostaria de aproveitar esta oportunidade para sublinhar que não há quaisquer exageros em todo este livro, que se baseia por inteiro numa história verdadeira; vou narrar alguns acontecimentos estranhos que sucederam e o meu papel será tão-só ordená-los de modo a permitir aos meus leitores acompanhá-los e entendê-los com mais facilidade.» (p. 19). Justifica-se a citação desta extensa passagem pois ilustra profundamente a intenção do autor ou o que o autor deixa passar como a sua intenção – e toda a história gira em torno da questão das intenções nas palavras e no coração – na obra que nos apresenta, tomando este herói ingénuo, sempre apresentado na terceira pessoa, como o centro da narrativa, os «acontecimentos estranhos» que lhe sucederam – como veremos adiante quando ele é vítima de um engano amoroso –, mas mais principalmente aqueles que vão sucedendo à cidade de Istambul no seu crescimento, e acusando uma ideia de fazer deste livro um testemunho, como depois se poderá verificar quando as várias personagens que participam da vida de Mevlut contribuem constantemente com os seus depoimentos na primeira pessoa para apresentar os eventos narrados sob a sua própria perspectiva, como se estivéssemos a assistir a um documentário. Nesta primeira parte do livro, o autor começa pelo meio, quando em 1982 Mevlut foge com uma rapariga da aldeia, então com 13 anos, por quem se apaixonou no casamento do seu outro primo Korkut, e a quem irá escrever cartas de amor nos próximos 3 anos até que finalmente decide ir buscá-la e organiza a sua fuga. Encontram-se um ao outro na escuridão e apesar de tudo parecer correr bem é quando já estão no carro e prontos a arrancar que «houve um relâmpago» e por esse momento tudo se ilumina «como uma memória distante»: «Pela primeira vez, Mevlut conseguiu ver bem o rosto da mulher com quem iria passar toda uma vida./Havia de recordar a absoluta estranheza daquele momento até ao fim da vida.» (p. 23). Percebemos depois, e só muito mais tarde no livro saberemos exactamente como, que afinal Mevlut “raptou” a irmã errada com quem acaba por viver um casamento feliz, apesar de por vezes se interrogar se não estará afinal a viver a vida de outra pessoa. Convém esclarecer que quando Mevlut se apaixonou por Samiha foi pelos seus lindos olhos, ao jeito da tradição literária otomana, pois naquela altura as mulheres «cobriam-se ainda mais e, como os homens a única coisa que podiam ver eram os olhos delas, tanto a literatura de corte como a popular fixaram-se neles.» (p. 605).
A vida de Mevlut é um retrato de uma geração de classe baixa, em que poucos concluíram a escolaridade básica, constroem as suas casas e delimitam terrenos de que se apropriam indevidamente, com um certo consentimento indeferente e alguma corrupção por parte das autoridades municipais, em bairros que crescem desordenadamente, em que as mulheres cobrem as cabeças com lenços e não são admitidas em funerais e onde a Europa é um país distante.
Mevlut é os olhos com que vemos Istambul e representa um símbolo da resistência de uma cultura arcaica por entre a modernidade que vai transfigurando a paisagem da cidade, começando por seguir os passos do pai como vendedor ambulante de iogurte e depois de boza, apesar de ainda tentar sem grande sucesso ou entusiasmo outros ofícios – muitas vezes empurrado pelos primos que não compreendem como pode ele insistir em calcorrear a cidade com uma canga às costas em vez de fazer dinheiro fácil. A boza é uma bebida que ganha contornos de coisa sagrada, como percebemos num diálogo onde Mevlut fala com ares de filósofo – talvez resultantes dessa sua estranheza que o leva a caminhar pela cidade nocturna como quem divaga pois é o caminhar que o ajuda também a pensar: «Só porque alguma coisa não é estritamente islâmica, não significa que não possa ser sagrada. Coisas antigas que herdámos dos nossos antepassados também podem ser sagradas. (…) Não quer dizer que ela só possa ser sagrada se toda a gente a andar a beber. Há muito poucas pessoas que leem mesmo o Corão. Mas em toda Istambul, há sempre pelo menos uma pessoa a lê-lo num determinado momento, e milhões de pessoas podem sentir-se melhor só de pensarem naquela pessoa. Basta que as pessoas saibam que a boza era a bebida favorita dos nossos antepassados. É isso que o pregão do vendedor de boza lhes recorda e fá-las sentir bem ouvi-lo.» (p. 296). Além da sua beleza, é a sua voz melancólica que leva a que as pessoas abram as suas janelas ao ouvir o seu pregão, e o convidem a subir, ou lancem os seus cestos, para provar essa bebida nacional que muitas vezes nem conhecem e que ele insiste em vender pelas ruas de uma cidade que nos últimos 40 anos passou de 3 para 13 milhões de habitantes, e onde o desenvolvimento urbanístico com a sua profusão de novos e altos edifícios já nem permite a um vendedor caminhar pelas ruas.
Em Março, a Presença lançou também Cevdet Bei e os seus filhos, o primeiro romance do autor, cuja história remonta à Istambul de 1905, e traça um retrato da Turquia moderna, entre a queda do império otomano e a fundação da República, ao narrar a história de três gerações de uma família. Pamuk concilia na sua já vasta obra uma perspectiva histórica da cultura islâmica e do Médio Oriente com a modernidade de uma capital que faz a ponte entre o Oriente e o Ocidente.
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