Yoga, de Emmanuel Carrère, com tradução de Sandra Silva, publicado pela Quetzal, contém uma advertência inicial: este não é um manual prático de yoga, nem um livro de autoajuda bem-intencionado. A estranha natureza deste livro, cujos temas são particularmente difíceis, fica clara logo nas primeiras linhas: “Como tenho de começar por algum lado o relato dos quatro anos ao longo dos quais tentei escrever um livrinho sorridente e subtil sobre yoga, enfrentei coisas tão pouco sorridentes e subtis como o terrorismo jiadista e a crise dos refugiados, mergulhei numa tal depressão melancólica que tive de ficar internado quatro meses no hospital (…) e, para rematar, perdi o meu editor, que pela primeira vez em trinta e cinco anos não lerá um livro meu” (p. 11).
Depois deste preâmbulo impactante, o autor escolhe assim iniciar a narrativa numa manhã de janeiro de 2015, para lhe dar alguma linearidade. Nesse dia, numa fase particularmente boa da sua vida, em que não tem quaisquer problemas de que se possa queixar, o autor-narrador preparava-se para seguir para um retiro de meditação de dez dias. Desconectado de tudo, sem telemóvel, sem um livro nem um caderno.
O autor-narrador revelará depois estar a escrever-nos as linhas que agora lemos dois anos depois dos factos que relata, num quarto de hospital, na primavera de 2017. Entretanto publicara, no Outono anterior, O Reino (publicado entre nós em 2021 pelas Edições Tinta-da-china), livro que teve algum sucesso.
Yoga é um misto de romance, ensaio, obra de autoficção – qualidades que aliás distinguem a obra de um dos mais importantes autores franceses –, e foi galardoado com o Prémio Princesa das Astúrias em 2021.
Neste maravilhoso livro, o autor começa por nos falar da sua própria experiência de meditação, e da sua prática de yoga, para depois articular essa busca de conhecimento, de um espaço interior, do exercício da sua própria escrita, com a demanda de querer ser uma pessoa melhor, “um pouco menos atormentada pelo meu ego” (p. 117): “procuro tornar-me uma pessoa melhor porque assim serei um melhor escritor. O que vem primeiro? Qual o meu verdadeiro objetivo?” (p. 117).
Como nos escreve páginas depois, a escrita é uma forma de explorar como será estar na pele de outra pessoa mas, sobretudo, perceber o que é estar na nossa própria pele: “Tentar sabê-lo talvez seja o que há de mais interessante na vida: o que é ser outra pessoa. É um dos motivos que nos leva a escrever livros; outro é tentar descobrir o que é ser eu mesmo.” (p. 97)
Nesta narrativa, como se compreende, a linearidade de pensamento foge constantemente, mas sem que o leitor perca o pé, conforme o autor cruza temas e assuntos diversos.
“O termo yoga tem para mim um sentido muito lato: o tai chi é uma forma de yoga. O sexo pode ser uma forma de yoga.” (p. 69)
Como veremos depois, essa (des)ordem narrativa não acontece por acaso… tendo por base uma certa desarrumação psicológica.
É igualmente paradoxal que o narrador nos escreva várias páginas sobre os primeiros dias (não chegará a cumprir os 10 dias previstos) passados num retiro de meditação, um espaço em que o objetivo ideal seria justamente “não pensar”. Sendo esse silêncio interior humanamente impossível, dever-se-ia alcançar um lugar de tranquilidade, onde deixar apenas correr os pensamentos, sem neles se deter: “Mas como seria maravilhoso, como seria repousante, que imenso progresso seria compor menos frases e ver um pouco mais. Ver as coisas como elas são, em vez de acrescentar à visão este género de comentário ininterrupto, subjetivo, tagarela, faccioso, condicionado, que produzimos de modo incessante sem sequer nos darmos conta.” (p. 116)
Abandonado o projeto de um “livrinho sorridente” sobre yoga, Emmanuel Carrère oferece-nos, ainda assim, uma poderosa história de transformação, descoberta, redenção. Ao revelar a sua história pessoal, que se enleia na do ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, o autor leva-nos de um primeiro espaço, de retiro espiritual, para um segundo momento mais fraturante, com o seu internamento durante alguns meses num hospital psiquiátrico, em que o autor chega mesmo a pedir a eutanásia.
No livro IV e V, há novamente uma viragem súbita, quer de cenário quer de tema. Ao longo das últimas cerca de 120 páginas, o que corresponde a um terço do livro, o autor-narrador conta-nos de, como chegado ao verão, instalado na bela ilha de Patmos, onde tem uma casa perto de um mosteiro em que São João terá supostamente escrito o Apocalipse, enfrenta o medo de que a loucura regresse. Entretanto, vai tomando conhecimento do que se passa nas costas das ilhas gregas, onde todos os dias desembarcam milhares de migrantes vindos do Afeganistão, da Eritreia, da Somália e sobretudo da Síria. É então que decide visitar Leros, pois “naquela ilha tão próxima onde sucedem coisas graves, o destino oferece-me talvez uma segunda oportunidade de fugir a mim mesmo” (p. 202).
Quando tenta ensinar escrita criativa a um pequeno grupo de adolescentes que deixaram a sua pátria, a sua família, a sua vida passada, para poderem sobreviver, o autor-narrador dá por si, no final, a ensinar-lhes tai chi, em troca das suas histórias de sobrevivência – mesmo quando estas aparentam ser fabricadas…
Definitivamente abandonado o projeto anterior de um livro fácil e leve sobre yoga, a narrativa parece distanciar-se muito do seu início. Mas este estranho e complexo compósito reflete, na verdade, umas das facetas da natureza do Yoga; mesmo quando se fala de coisas que aparentam ser distintas, a possibilidade de que estejam, afinal, ligadas é bastante grande. A divisão interior, a desconfiança perante a alteridade, os migrantes e refugiados, a relação com o outro que é tão ou mais difícil do que aquela que tentamos ter connosco mesmos, a paciência necessária à escrita afim da serenidade necessária à vida, são temas aqui cerzidos de forma quase tão natural como o fluxo da respiração ao acompanhar os movimentos em câmara lenta do tai chi.
“Disse muitas vezes que temos de respeitar a nossa dor, que não a devemos relativizar, que o sofrimento neurótico não é menos cruel do que o sofrimento comum, mas comparado com o suplício pelo qual passaram estes rapazes de dezasseis ou dezassete anos, a história de alguém que tem tudo, absolutamente tudo para ser feliz, e que consegue sabotar a sua felicidade e a da sua família, é uma obscenidade que considero inconcebível pedir-lhes que entendam” (p. 256).
Emmanuel Carrère é uma das vozes mais originais e populares do panorama literário francês atual. Autor de uma dezena de romances e vários volumes de ensaios. É também realizador de cinema. Yoga, forte candidato ao Prémio Goncourt, foi nomeado para o Prémio Médicis e o Prémio dos Livreiros Franceses, além de ter valido ao autor um dos prémios literários mais prestigiados do mundo, o Prémio Princesa das Astúrias.
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