O Espelho e a Luz, de Hilary Mantel, encerra a trilogia que iniciou com Wolf Hall e O Livro Negro. Tendo lido os primeiros dois livros da série logo quando foram publicados pela Editora Civilização (em 2010 e em 2013, respectivamente), assim que soube que a Editorial Presença não só se preparava para lançar o último volume, assim como os outros livros da série com uma nova tradução, sabia que teria de (re)ler a trilogia de uma assentada. Não me arrependi, embora esta empreitada me tenha levado mais tempo do que o previsto, até porque o último volume tem quase 900 páginas de letra miudinha. (alerto para o facto de poder haver um pequeno spoiler no texto)
Corre o mês de maio de 1536 em Inglaterra. Ana Bolena está morta, depois de uma ascensão demorada e trabalhosa, que ameaça a cisão da Inglaterra face ao Império Cristão. Henrique VIII já se prepara, entretanto, para casar com a sua terceira rainha, Jane Seymour. A esta, quando já ninguém acha que o reino tenha mais donzelas casadoiras, seguir-se-á ainda, neste livro, uma quarta mulher que, na verdade, tem de ser “encomendada” de fora.
Thomas Cromwell, indivíduo da mais baixa extracção social, filho de ferreiro, um pai violento e alcoólico que o espancava desalmadamente, continua a contar apenas com a sua inteligência para cimentar o seu papel como braço direito do rei, atento à «mutabilidade da fortuna» (p. 376), e ao destino do seu mentor, o cardeal Wolsey, que (logo no início de Wolf Hall) num ápice deixa de ser o mais importante conselheiro do rei para passar a inimigo, sem que o rei o queira voltar a ver.
«É isso que Henry faz. Esgota as pessoas. Fica com tudo o que elas lhe dão e mais ainda. Quando considera que já não lhe servem para nada, está mais ruidoso e mais gordo, e essas pessoas não passam de invólucros ou cadáveres.» (p. 656)
Da mesma forma que «ele, Cromwell» não esquece as sovas que o pai lhe dava, e que o levaram a fugir de casa, está ciente do comportamento igualmente volátil do rei, sempre na expectativa de que Henrique VIII se volte contra ele, quando achar que o seu ministro já não lhe serve. Apesar da sua rede de espiões e informadores, da sua inteligência e do seu calculismo presciente, capaz de estar a par de tudo o que se passa no reino e arredores, em tempos mordido por uma cobra, cujo veneno e natureza parecem ter-se infiltrado nele (p. 677), Cromwell é incapaz de prever as mudanças de humor do seu regente, tão depressa enamorado como logo a seguir enfadado das suas mulheres, deixando as suas cabeças rolar; Henrique VIII tão depressa promove a carreira de Cromwell, agora Lorde do Selo Privado, e um dos grandes arquitectos das reformas no reino, como o responsabiliza por não conseguir cumprir os caprichos reais: «Se os reis não nos virem, esquecem-se de nós. Mesmo quando nada no reino se faz sem nós, os reis pensam que são eles que fazem tudo sozinhos.» (p. 669)
Podemos perguntar-nos porque é que este livro, o último de uma série, chega às quase 900 páginas, sem que o ímpeto da prosa e o vigor da narrativa vacilem. É um livro que se demora tanto mais na indecente ascensão de Cromwell, cada vez mais odiado pelos nobres que não o vêem como seu par, num crescente acumular de riquezas e propriedades – mesmo que ele saiba que, na verdade, “o Rei o dá, o Rei o tira” –, quanto, subitamente, nas últimas 70 páginas, o desfecho (a narrativa da sua queda) é tão trágico quanto célere. Talvez por isso mesmo o espelho, presente no título e recorrente na narrativa, seja um símbolo essencial, a dar conta dos castelos de cartas que são tão pouco sólidos quanto uma ilusão de óptica. Talvez por isso mesmo o espelho, presente no título e recorrente na narrativa, seja um símbolo essencial, a dar conta dos castelos de cartas que são tão pouco sólidos quanto uma ilusão de óptica.
Contado na terceira pessoa, numa narrativa em que a autora parece ceder todo o espaço à sua personagem, a perspectiva é sempre a de Cromwell; é sempre a partir do seu ponto de vista que focamos o desenrolar da intriga. Por isso, o livro acaba justamente com o seu último sopro de vida. A Nota da Autora serve, na verdade, como um epílogo, que em 3 páginas nos põe a par do desfecho historicamente registado das várias personagens.
Uma nota mínima, menos positiva, e não desmerecendo o mérito da tradução e publicação destas três obras pela Presença, é a de que parece ter havido falta de consenso, ou falhou uma revisão geral, que uniformizasse pequenos pormenores; não se percebe porque é que Henry não é Henrique; ou porque se prefere grafar Boleyn ou Plantagenet; ou porque é que Catarina, no primeiro volume, passa a ser Catherine no terceiro volume.
Hilary Mantel é autora de catorze livros, incluindo o livro de memórias Giving Up the Ghost. Os dois primeiros volumes da trilogia, Wolf Hall e O Livro Negro venceram ambos o Man Booker Prize: uma proeza sem precedentes.
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