A Última Coisa Que Ele Queria, de Joan Didion, publicado pela Cultura Editora, com tradução de Alexandra Cardoso, apresenta-se como um thriller.

«Mais tarde, iria ter a sensação de que nada tinha corrido notavelmente naquele dia, mas também lhe iria parecer que nada naquele dia tinha corrido notavelmente bem.» (p. 27)

Escrito com um certo tom de reportagem, não fosse o carácter irreverente e oscilatório da escrita, em que ora afirma ora contradiz. Na prosa conflui ainda um certo lirismo, feito de repetições, de partes de frases que se ecoam, que se desconstroem, a confundir o leitor num relato que parecia pretender ser uma reconstituição ou uma «visão revisionista» de um incidente (p. 21) ocorrido durante a presidência de Ronald Reagan na América Central dos anos 80. Entretanto passou-se meia geração após esse acontecimento, sobre o qual a narradora nos escreve, sentada à secretária «num apartamento no Upper East Side de Manhattan» (p. 114).

«Para memória futura, sou eu quem está a falar.

O leitor conhece-me, ou pensa que conhece.

A autora não muito omnisciente.» (p. 13)

A jornalista Elena McMahon, que a autora-narradora conheceu em tempos, desiste da campanha presidencial que estava a cobrir para o Washington Post para fazer um favor ao pai que leva a cabo negócios obscuros. Ao agir em nome do pai nesse negócio duvidoso que não corre bem – um negócio «onde a verdade e a ilusão pareciam igualmente duvidosas» (p. 101) –, Elena dá si retida numa ilha das Antilhas, um local idílico para turismo, em que Elena mal repara, apesar dos longos compassos de espera por que passa, talvez porque aquele cenário apenas serve para tráfico de armas, encontros entre espiões, operações militares secretas e assassinatos.

Uma história intrincada, acelerada, de leitura hipnótica e provocadora, sobre jogos de interesses, ambiguidades políticas e conspirações, em que, subliminarmente, em algumas breves passagens, a autora-narradora nos parece revelar um pouco do seu próprio método:

«A personagem do “escritor” não me atrai.

Como forma de ser tem um lado insípido. Também não me sinto à vontade com a vida literária; a sua linha dramática tradicional (o romance da solidão, da luta interior, do buscador solitário pela verdade) acabou por me parecer, logo de início, um conceito penoso. Um pouco mais tarde, perdi a paciência com as convenções do ofício, com a exposição, com as transições, com o desenvolvimento e a revelação da “personagem”.» (p. 75)

Joan Didion, nascida em 1934, aclamada autora norte-americana de O Ano do Pensamento Mágico, e de Noites Azuis, ambos publicados pela Cultura Editora, escreveu romances, não-ficção, teatro e filmes. Foi considerada pelo The New York Times como uma das vozes literárias, dotada de um estilo jornalístico elegante e irónico, que melhor revelou a identidade norte-americana do seu tempo. Faleceu hoje, dia 23 de Dezembro de 2021, com 87 anos.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.