Um cão deitado à fossa, de Carla Pais, publicado pela Porto Editora, é o mais recente romance de uma nova voz da jovem literatura portuguesa. Venceu o Prémio Literário Cidade de Almada em 2018.
Numa serração há dois irmãos, tratados de forma diferente pelo pai. Um é «doente da fala» (p. 29), pequeno e enfezado, ri-se muito, um desarranjo do juízo, mas é para ele que os olhos do pai se iluminam: «o meu irmão é querença dentro dos seus olhos» (p. 8). O outro é Urbano, sempre designado pelo pai como «rapaz». Essa palavra é, naquele espaço, «o único som que desafina o barulho ensurdecedor da serra» (p. 8).
É sob o barulho da serra que o irmão bem-amado, «anjinho de asas quebradas» (p. 29), acabará por adoecer, conforme os órgãos vão empenando até que a febre o leva. A mesma serra que sempre zuniu nos ouvidos de Urbano… Urbano cresce enquanto a mãe submissa definha, vergada ao marido, e encontra na cerveja e no vinho a escapatória possível para uma loucura premente. É face a esse modelo de submissão e apagamento, que tenta mesmo anular-se pelo suicídio, que o rapaz cresce: «a mãe é apenas um vulto, o rasto de um pinhal inteiro entornado nos ombros. E eu, pó. Nada dentro da sua voz.» (p. 16)
Alternando entre a primeira pessoa, na voz do próprio Urbano, e a terceira pessoa, numa narrativa que coloca em contraste a infância e a velhice de uma vida que parece ter passado perdida:
«A vista habitua-se depressa à sombra, descobre os traços foscos e deformados dos objetos, ganha imensidão perante o escuro. Urbano tem essa imensidão nos olhos quando se detém junto aos retratos que esmoreceram na cómoda. O filho. A filha. Os netos. A vida toda abreviada no nevoeiro das cores. Já nada daquilo tem volume dentro dos dias, por isso desce as escadas.
São oito e vinte e quatro. Todas as manhãs começam à mesma hora.» (p. 14)
É essa dicotomia que estrutura a obra que permite uma leitura ambígua, entre a antipatia por Urbano, tão temido quanto detestado pelos seus, e a empatia por uma criança que foi assim moldada, a quem foi incutido um papel num universo de uma «ruralidade fechada nos seus próprios fantasmas». Uma criança que nasce na miséria e vinga como proprietário, mas que persiste incapaz de amar a família.
Com uma «escrita cujo alcance literário deve ser reconhecido pela sua qualidade imagística e harmonia estilística», segundo o júri do Prémio Cidade de Almada, a prosa coloquialmente límpida de Carla Pais, próxima do falar das gentes do campo, nascida das entranhas da dor e da terra, inova sobretudo no modo como desenha uma história com pinceladas e breves imagens, criando um ambiente opressivo, num mosaico em várias gerações de vidas vazias e estéreis, como os filhos que Constantino enterra entre os quinze e os vinte anos «junto às chapas de zinco que faziam de retrete» (p. 130). Mas mesmo dentre o negrume da maldade humana a esperança no lado bom do ser humano ainda assim insiste em romper.
Carla Pais nasceu em Leiria, em 1979. O seu primeiro romance, Mea culpa, também no catálogo da Porto Editora, foi publicado em 2017, indigitado para o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís e obteve reconhecimento por parte do público e da crítica.
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