Stalinegrado, de Vassili Grossman, é um portentoso romance, e não nos referimos apenas à sua dimensão enquanto cartapácio de quase 800 páginas numa letrinha miudinha. Imenso na dimensão humana, histórica, lírica, metafísica, ao constituir um ambicioso fresco das vidas dos russos em primeiro plano, com a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo.

Publicado pela primeira vez em Portugal pela Dom Quixote, com tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Stalinegrado é o primeiro de dois romances –igualmente volumosos – que focam a vida dos russos na linha da frente. Vida e Destino, sequela de Stalinegrado, considerado a sua obra-prima, foi um livro considerado tão perigoso na União Soviética que não só o manuscrito como também as fitas com que foi digitado foram confiscados pelo KGB, permanecendo desaparecido durante vinte anos. Designado como o Guerra e Paz do século XX, este díptico levou a equiparar Grossman com Tolstói, por adoptar uma estrutura global de modo a constituir um imenso fresco da Rússia soviética, e assim contar a História global através das histórias individuais de uma ampla galeria de personagens.

Patriotismo soviético

A perspectiva de Grossman é a de um patriota soviético, com passagens narrativas que denotam fortemente esse patriotismo: “O êxito inicial obnubilou Hitler, impediu-o de ver a natureza daquele granito, daquelas forças espirituais e materiais contra as quais se levantara. Não eram forças ilusórias, eram as forças de um grande povo que lançou os alicerces do futuro mundo.” (p. 24) Há momentos em que quase sentimos que o autor escreve ao serviço do regime, como quando prenuncia que na batalha de Estalinegrado a “defesa rija” não tem comparação com nenhuma outra da História, nem mesmo “nos tempos da batalha de Troia, nem na batalha das Termópilas” (p. 137). Ainda assim, o autor foi censurado e só viu o seu romance publicado depois da morte de Estaline.

Em abril de 1942, Hitler e Mussolini planeiam a enorme ofensiva na Frente Oriental que culminará na maior e mais sangrenta batalha da história da humanidade. O romance abre justamente com um encontro em Salzburgo entre estas duas figuras, que são também personagens do romance, ao planear novo ataque à União Soviética.

Durante meses, as forças soviéticas são repelidas pelo avanço das tropas alemãs, e Stalinegrado é tudo o que resta entre os invasores e a vitória. A situação “grave e perigosa do país, do povo, do Estado tinha uma ligação direta precisamente com a Frente Sudoeste, hoje renomeada Frente de Stalinegrado” (p. 134). Entretanto também chegam ecos da situação desesperante de Leninegrado, “oprimida pela fome, pelo fogo e pelo gelo”, mas continuava a resistir “havia trezentos dias” (p. 187).

Romance épico

Stalinegrado intercala a natureza de um romance épico com um registo quase documental do evoluir da guerra. A intriga centra-se na história de uma família de classe média, os Chapochnikov, cujos diversos membros serão dispersos pelas forças da guerra e acasos do destino entre a Alemanha e a Sibéria. No centro da família, e no coração do romance, situa-se Aleksandra Vladímirovna, a matriarca que se recusa a deixar a cidade, apesar do avanço dos nazis. Longe da frente, Liudmila, a sua filha mais velha, vive um casamento infeliz com Víktorov Strum, um físico judeu que embora preocupado com a mãe, perdida algures na Ucrância, por trás das linhas alemãs, mantém-se determinado numa investigação científica que pode ser determinante como estratégia militar. A extensa galeria de personagens continua quase infindamente (ainda que sem chegar às 500 personagens de Guerra e Paz), desafiando a atenção do leitor, sem que este se perca, pois a leitura desta obra imensa (que se poderia temer como densa) corre o risco de se tornar viciante. A narrativa torna-se menos romanceada quando a história da família Chapochnikov alterna com uma cuidadosa reconstituição da batalha de Stalinegrado, desde os seus primórdios, com a iminência da ameaça do invasor alemão, até a campanha acelerar, resultando na derrota do Exército Vermelho, obrigado a recuar para o centro industrial da cidade, nas margens do Volga. É aí, nos escombros da cidade bombardeada, que os soviéticos conjugam forças para um derradeiro acto de resistência.

Um leitor atento pode constatar como a cidade de Stalinegrado é, mais do que um cenário, a grande protagonista do romance. Há várias passagens descritivas que acusam um tom nostálgico e de estima por esta “estranha” cidade onde as ruas têm nomes de todas as cidades da União Soviética (p. 95). Mas, ao longo das centenas de páginas deste livro fascinante, a violenta batalha por Stalinegrado irá reduzir a cidade a escombros e marcar a vida de todos os envolvidos.

Vassili Grossman nasceu em 1905, na Ucrânia (em Berditchev, terra judaica, onde a sua própria mãe foi uma das vítimas do extermínio de judeus pelos nazis, em 1941-1942). Foi viver para Moscovo ainda jovem. Nos anos 1930 formou-se em engenharia química mas começou a dedicar-se exclusivamente à escrita desde essa altura. Em 1941, tornou-se correspondente do Estrela Vermelha, jornal do Exército Vermelho, com reportagens sobre a defesa de Stalinegrado, a queda de Berlim e as consequências do Holocausto.

Grossman morreu em 1964, em Moscovo.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.