Quando éramos peixes, publicado pela Companhia das Letras, é o novo romance de José Gardeazabal. O estilo do autor torna claro que a escola de influências é a mesma do irmão, Gonçalo M. Tavares, com base num profundo conhecimento da literatura europeia do século XX (obviado pelos nomes das personagens, por exemplo) e na relação entre filosofia e literatura.
Depois do interregno de Quarentena. Uma história de Amor, publicado no ano passado, que bebia da realidade da evolução da pandemia em Portugal, José Gardeazabal volta ao registo habitual dos seus primeiros romances. Com este livro, retoma-se aliás a «Trilogia dos Pares», iniciada com A melhor máquina viva (2020).
Simone e Tomass, arquiteta e engenheiro, terminam uma ponte nas margens da Europa, entre Oriente e Ocidente. Os dois formam um casal há bastante tempo, mas precisam de reconstruir a relação, pois “há algum tempo que não viviam essa aventura da melhor maneira” (p. 19). Na cama, depois do sexo, estão habituados a ficar despidos para melhor poderem ter conversas importantes. É clara a analogia, ao longo do livro, entre a construção da ponte e a reconstrução de um diálogo a dois: “Terminar uma ponte na ásia era a sua última oportunidade para o amor” (p. 32). Do mesmo modo que um casal constitui, como se pode ler a dada altura, a “essência da civilização ocidental” (p. 330).
Entre um passado, marcado por um regime despótico autocrata, e um presente revisto com alguma ironia (por exemplo, perto do fim, no capítulo «Últimas notícias»), este ambiente de fronteira, entre a floresta europeia e a estepe asiática, promove um diálogo dualista que perpassa toda a narrativa. Num registo que discorre livremente, em que se funde literatura e filosofia, prosa profundamente poética e reflexão, o autor toca várias temáticas a partir de uma ótica dualista. Muitas vezes a partir dos próprios diálogos entre as personagens, interroga-se o feminino e o masculino, a sexualidade e o género, o capitalismo e o populismo autoritário, o indivíduo e a coletividade, a realidade e os mecanismos narrativos, a literatura e a não ficção.
“Uma das falhas do capitalismo é o amor, não se faz em quantidade, não se fabrica. O amor não é suficiente, falta.” (p. 286)
Simone e Tomass acabam por formar um triângulo amoroso com Camille, filha de um autocrata e objeto de desejo. Será a partir do momento em que os vários vértices se tocam que acontece uma mudança, entre a derrocada da ponte e o anúncio de uma nova vida.
Uma escrita universal de um dos autores mais originais da literatura portuguesa.
José Gardeazabal nasceu em Lisboa. O seu livro de poesia, história do século vinte, foi distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura. O seu primeiro romance, Meio Homem Metade Baleia, foi finalista do Prémio Oceanos. A Melhor Máquina Viva, o segundo romance, foi considerado um dos melhores livros de 2020 pelo Expresso e pelo Público, foi finalista dos prémios Fernando Namora, Correntes d‘Escritas e da Sociedade Portuguesa de Autores. Tem igualmente livros de poesia publicados pela Relógio d’Água e obras mais inclassificáveis, como Dicionário de Ideias Feitas em Literatura.
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