Depois de Alguém falou sobre nós, de Irene Vallejo, publicado no ano passado, chega-nos agora um novo volume de breves crónicas da autora espanhola de O Infinito num Junco.
O Futuro Recordado, publicado pela Bertrand Editora, com tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas, reúne mais 118 textos, originalmente publicados na sua coluna semanal do jornal periódico Heraldo de Aragón. Incluem-se ainda, por a autora assim achar oportuno, dois pequenos textos, oriundos de outras publicações, e igualmente breves. Destaque-se o breve ensaio «A rota das histórias», que apela à revivificação da importância da narrativa e de como se começou afinal a contar histórias como forma de dar sentido e ordem ao mundo e de nos conhecermos melhor a nós mesmos; histórias que até na medicina tradicional hindu podiam ser usadas como forma de tratamento.
A autora lança uma luz acutilante e sobretudo crítica sobre alguns dos aspectos centrais aos nossos dias. Mas ao captar o pulsar do nosso tempo, a cronista invariavelmente convoca as vozes do passado. É assim a partir de figuras e histórias da Antiguidade que a autora cria um contraponto com a nossa acelerada e narcísica época.
Irene Vallejo recria um “banquete imaginário” com convidados ilustres como Safo, Tucídides, Séneca, Epicteto, Graciano, Montesquieu ou Oscar Wilde, entre muitos outros. Os temas são-nos invariavelmente próximos, levam-nos a um questionamento crítico da realidade de hoje, que apesar da modernidade não deixa de transportar ecos de tempos mais remotos. É também assim que se justifica a marca de aparente contradição no título do livro, de que a cada passo que damos no sentido do porvir transportamos o molde das pegadas de quem nos precedeu: “a voz do passado pode falar no futuro e evocar o sopro de vida que os mortos ainda sussurram.” (p. 98)
Vozes essas do passado que nos chegam também por outras vias, como se pode ler no ensaio dedicado ao amor pela leitura, «O prazer dos estranhos»:
“Graças aos livros, habitamos na pele de outros, acariciamos os seus corpos e afundamo-nos no seu olhar. E, num mundo narcisista e ególatra, o melhor que nos pode acontecer é sermos todos.” (p. 20)
Portanto, o pensamento clássico não é obsoleto e continua a enformar a nossa mentalidade, o nosso quotidiano, a nossa sociedade, num diálogo constante entre o ontem e o hoje. Diálogo esse que se constrói até no nosso léxico, por exemplo quando a autora nos leva à origem das palavras e ao seu sentido etimológico, relacionando termos aparentemente tão díspares como húmus (terra) e humildade (ter os pés bem assentes na terra).
Ao longo dos vários textos aqui reunidos perpassa sobretudo um claro criticismo da vaidade dos dias que correm, da histeria desinformada das redes sociais, de uma época que exacerba a necessidade de nos autopublicitarmos, e de seguirmos os conselhos vãos (e desajuizados) de pessoas que achamos belas (e a autora desmonta ainda, com base num episódio da época clássica, o porquê de olharmos para quem é belo como alguém que é consequentemente bom e sábio).
Aquilo que a autora consegue magistralmente é mostrar que aquilo que achamos ser o futuro traz sempre um eco de um passado distante, por exemplo quando considera que os memes podem ser equiparados ao que os provérbios representavam para os nossos avós. Outras vezes, os ecos do passado ressurgem com um sentido inverso à ideia original…
«Nestes tempos de excesso tecnológico está a nascer um movimento contra a dependência dos telemóveis e dos computadores que invadem todos os campos das nossas vidas (…) Um dos últimos convertidos é o criador do like para o Facebook. Ele próprio reconhece que esse botão azul desencadeia dinâmicas nocivas de obsessão e dependência. Apesar do seu aspeto inofensivo, o ícone da mãozinha acumula séculos de história. Imita o antigo gesto do polegar levantado usado pelas multidões nos combates de gladiadores. (…) Hoje os arqueólogos acreditam que, ao contrário do que os filmes mostram, não se tratava de subir ou descer o dedo. (…) O polegar à mostra que o Facebook oferece implicava, na verdade, a morte. Ainda assim, muitos de nós, gladiadores virtuais, digladiamo-nos no coliseu das redes sociais para conseguirmos cada vez mais dedos erguidos.» (p. 69)
Várias destas colunas, que não ocupam mais que uma página, podem ser exemplos de bom jornalismo cultural. Alguns dos textos podem inclusivamente ser úteis para leitura e discussão em aula. É o caso do ensaio «Inseparáveis», que argumenta como é arbitrária a fronteira entre a ciência e as letras, num mundo regido por uma lógica capitalista que insiste em privilegiar as disciplinas de ciências como as únicas necessárias ao mercado laboral: «Ninguém é mais esperto por escolher o cálculo ou a história. As metas dos cientistas e dos artistas são as mesmas: compreender o mundo, derrubar preconceitos, tornar-nos livres.» (p. 28)
Em contrapartida, nalguns dos textos permanece também a sensação, aqui e ali, de que alguns temas são tocados e interligados demasiado rapidamente, deixando o leitor a querer mais. Alguns capítulos, como «Elefantes em Numância», recontam apenas pequenas histórias da Antiguidade, comprovando a paixão desta autora pela mitologia e pela história grega e romana.
Irene Vallejo é apaixonada pelo mundo clássico desde tenra idade. Estudou Filologia Clássica, doutorando-se nas Universidades de Saragoça e Florença. É escritora, colunista do El País e do Heraldo de Aragón, palestrante e promotora de educação e do conhecimento sobre o mundo clássico. Partilha com os outros, diariamente, a sua paixão pela Antiguidade, pelos livros e pela leitura. Em 2020, recebeu o Prémio Nacional de Literatura 2020 (Espanha) na categoria de ensaio com o livro O Infinito num Junco. A autora tem sido distinguida com inúmeros galardões: Prémio Nacional de Literatura 2020 (Espanha); Prémio El Ojo Crítico de Narrativa; Prémio Acción Cívica 2020; Prémio Las Librerías Recomiendan 2020; Prémio Aragón 2021, entre outros.
É actualmente uma das autoras mais reconhecidas em todo o mundo e tem visitado regularmente Portugal.
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