O Acontecimento, de Annie Ernaux, publicado pela Editora Livros do Brasil, na colecção Dois Mundos, com tradução de Maria Etelvina Santos, é provavelmente o livro mais acutilante e incisivo da autora laureada com o Nobel da Literatura em 2021.

“Milhares de raparigas subiram uma escada, bateram a uma porta atrás da qual estava uma mulher acerca de quem nada sabiam, a quem iriam entregar o seu sexo e o seu ventre. E aquela mulher, a única pessoa, então, capaz de acabar com a infelicidade, abria a porta, de avental e pantufas às riscas, com um trapo na mão: ‘Diga lá, menina!’ ” (pp. 53-54).

Em 1963, em Rouen, uma jovem de 23 anos, estudante universitária brilhante, descobre que está grávida. Sem pudor, numa escrita concisa, de frases geralmente breves e cortantes como um bisturi, este é um forte testemunho de uma autora que atingiu a maestria na escrita memorialística e nos reconta acontecimentos ocorridos quarenta anos antes, como quem tenta despojar-se, pela escrita, das memórias daquele trauma que é, afinal, o de tantas mulheres, num tempo em que a palavra aborto “não tinha lugar na linguagem” (p. 42).

Sozinha, sem ter a quem recorrer, na França numa época em que o aborto era ilegal, esta jovem sente-se derrotada pela vergonha e, sobretudo, pela aguda consciência de que a gravidez representa um falhanço social. Ter aquela criança implica não poder cumprir o seu sonho de alcançar determinadas metas de aspirar a um “lugar ao sol” que transcenda aquele que a sua família alcançou.

“De um modo confuso, estabelecia uma relação entre a classe social de onde provinha e o que me estava a acontecer. Sendo a primeira a realizar estudos superiores numa família de operários e pequenos comerciantes, tinha escapado à fábrica e ao balcão.” (p. 24)

O Acontecimento é um poderoso testemunho contado no feminino de uma experiência humana dolorosa e profundamente transformadora, cruzando temas universais, como vida e morte, moral e pecado, direitos humanos e interdição.

Atente-se numa das epígrafes do romance, em que a autora cita Michel Leiris: “O meu duplo desejo: que o acontecimento se transforme em escrita. E que a escrita seja acontecimento.” Esta vontade manifesta-se, mais à frente, no corpo do próprio texto, quando a narradora afirma, como que em sua defesa: “Pode acontecer que uma tal narrativa provoque irritação, ou mesmo repulsa, seja qualificada de mau gosto. Ter vivido determinada coisa, seja ela o que for, dá-nos o direito imprescritível de a passar a escrito. (…) E se não levar até ao fim a relação com essa experiência, estou a contribuir para ocultar a realidade das mulheres e a colocar-me do lado da dominação masculina do mundo.” (p. 41)

Em conclusão, e parece-nos que a confirmar a actualidade deste romance-testemunho (escrito em 1999, e publicado um ano depois em França), O Acontecimento foi adaptado ao grande ecrã pela realizadora Audrey Diwan, tendo estreado justamente em 2021, e foi vencedor do Leão de Ouro em Veneza.

Já se encontra em pré-venda o novo livro da autora, Memória de Rapariga, que sai dentro de poucos dias.

Annie Ernaux nasceu em Lillebonne, na Normandia, em 1940, e estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, sendo formada em Letras Modernas. É atualmente uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes. Galardoada com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017), o Prémio Formentor de las Letras (2019) e o Prémio Prince Pierre do Mónaco (2021) pelo conjunto da sua obra, destacam-se os seus livros Um Lugar ao Sol (1984), vencedor do Prémio Renaudot, e Os Anos (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional. Em 2022, Annie Ernaux foi distinguida com o Prémio Nobel de Literatura.

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.