Frankenstein em Bagdade, de Ahmed Saadawi, publicado pela Gradiva (disponível para já em ebook e a aguardar publicação em papel), é um romance original e irreverente que colocou Saadawi no pódio dos melhores autores árabes com menos de quarenta anos. O autor foi também o primeiro escritor iraquiano a receber o prestigiado Prémio Internacional de Ficção Árabe em 2014. Frankenstein em Bagdade foi ainda premiado com o Le Grand Prix de L’Imaginaire em 2017.
A ação passa-se num Iraque devastado pela guerra, campo de batalha entre várias frentes – Guarda Nacional Iraquiana, milícias sunitas, milícias xiitas – onde a maior parte dos caixões enterrados seguem vazios de corpos. Na capital ocupada pelo exército americano, Bagdade, a morte paira como uma praga e não passa um único dia em que não expluda um carro armadilhado. Os que sobrevivem às explosões limitam-se a apalpar o corpo para confirmar que estão vivos, levantam-se e seguem caminho.
Desfilam por estas páginas as mais variadas e insólitas personagens. Hadi é um sucateiro que percorre as ruas a juntar ferro-velho por entre os destroços de Bagdade. Nas suas deambulações recolhe partes de corpos humanos que cose de modo a criar um cadáver completo. Mas Hadi é também um mentiroso, contador das mais fabulosas histórias, capaz de se deixar levar por desvios sem perder o fio à meada, e sem nunca se enredar nas suas mentiras. Elishva é uma viúva, velha demente e com amnésia para uns, alguém com poderes especiais para outros que lhe conferem a capacidade de evitar as calamidades que deflagram na cidade, que vive numa faustosa morada e pede encarecidamente a São Jorge que lhe traga o filho que desapareceu há vinte anos, na guerra entre o Iraque e o Irão. São Jorge tem um rosto “dócil e afável e belo, como todos os santos de todas as imagens” e fala com Elishva, mas apenas de noite e durante meia hora: “porque, durante o dia, a imagem era apenas uma imagem, inanimada e completamente imóvel, mas à noite abria-se uma porta entre o seu mundo e o outro, e o Senhor descia à terra, materializado na imagem do santo”. O Brigadeiro Majid, responsável pelo Departamento de Busca e Localização, que vende ao governo e aos americanos “informações extraídas de cartas, de areia, de espelhos, de rosários feitos de feijões, e outras coisas do género” por uma equipa de astrólogos. E temos, por fim, o Não-Sei-Quantos, a criatura que ganhou vida e agora se tornou um profeta, instrumento de destruição maciça, salvador ou líder maléfico, provavelmente a “única justiça que resta” naquele país, percorre a cidade enquanto procura vingar as mortes das várias partes que o compõem, para que essas vítimas possam descansar em paz. Conjunto de partes de pessoas de diversas origens étnicas, tribais, raciais e sociais, a criatura representa “a mistura impossível que nunca foi conseguida no passado”, o “primeiro verdadeiro cidadão iraquiano”.
Tal como Frankenstein é um compósito que resulta da junção das partes de vários cadáveres, mais a alma de outra vítima, estas várias histórias criam um romance mágico, magnífico, cheio da capacidade encantatória e efabulatória dos grandes livros. Porque, como alguém diz no livro, são as histórias maravilhosas que nos salvam.
Ahmed Saadawi, iraquiano, é romancista, poeta, argumentista, realizador de documentários. Vive em Bagdade.
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