De Noite Todo o Sangue É Negro, de David Diop, publicado pela Relógio d’Água em Julho de 2021, com tradução de Miguel Serras Pereira, foi o vencedor do International Booker Prize 2021. Diop é o primeiro romancista francês a vencer este galardão destinado a premiar ficção traduzida para inglês, com este seu romance de estreia, cujo título original é Frère d’âme.
Numa manhã da Primeira Guerra Mundial, o capitão Armand comanda o ataque contra o inimigo alemão. Entre os soldados que avançam estão Alfa Ndiaye e Mademba Diop, dois atiradores senegaleses que combatem sob a bandeira francesa. Numa prosa torrentosa, borbulhante, em que o leitor mergulha na corrente de consciência de Alfa, vivemos o seu desespero por não ter conseguido dar o golpe de misericórdia em Mademba, quando este cai ferido ao lado do amigo e irmão. Abalado pela dor e pelo horror, Alfa começa a ter comportamentos estranhos, ao colecionar as mãos dos inimigos, mesmo reconhecendo, no fundo dos seus olhos azuis, que eles parecem dotados de uma natureza boa. Se Alfa, primeiramente, causa diversão e admiração, depois passa a ser temido pelos camaradas, que o apelidam de feiticeiro e temem-no como se ele encarnasse a própria Morte. A narrativa é desfiada com as palavras de um homem que parece estar ele mesmo a descobrir a plasticidade de uma linguagem que não é a sua; Alfa “fala-nos” em francês, mas a sua língua é o Wolof, e afirma-se mesmo, no texto, que ele não compreende a língua francesa. Há inclusivamente uma belíssima passagem que nos fala do acto de traduzir: «Traduzir nunca é simples. Traduzir é trair nas margens, é ludibriar, é regatear uma frase em troca de outra. Traduzir é uma das únicas atividades humanas em que se é obrigado a mentir a retalho para se conseguir a verdade por grosso. Traduzir é assumir o risco de compreender melhor do que os outros que a verdade da palavra não é una, mas dupla, senão tripla (…)» (p. 115).
Num registo muito próximo do oral, pontuado por recorrências, como a expressão «Pela verdade de Deus», este livro surge assim como um testemunho, uma memória de um homem cuja mente percorre o limiar da sanidade: «o lado de dentro do meu espírito estava do lado de fora» (p. 15). A meio do livro, este horror, tão desconfortável quanto encantatório para o leitor, acaba por se dissipar, conforme os pensamentos de Alfa, afastado da frente de batalha, a travar uma guerra que não é a sua, recuam para as suas vivências anteriores. Talvez por serem as memórias do amor físico, da camaradagem e da amizade que representam a oportunidade de Alfa poder voltar a saber e a ser quem é.
David Diop nasceu em Paris em 1966 e cresceu no Senegal. É atualmente professor na cidade de Pau, em França.
Leave a Comment