Da Meia-Noite às Seis, de Patrícia Reis, autora publicada pela Dom Quixote, é um romance claramente inscrito no contexto pandémico que se tem vivido nestes dois anos. Contudo esta não é uma história que se detém na pandemia mas sim no demais que a vida comporta. Uma tessitura narrativa feita de várias vidas um pouco desencontradas, que se encaixam de modo a compor um mosaico que reflecte as nossas próprias vidas nestes tempos.
Com início na história de Susana Ribeiro de Andrade, cujo marido morreu em 2022, «durante os dias de combate ao vírus que nunca mais se foi embora, o vírus que chegara há demasiado tempo» (p. 11), o impulso de alguns leitores pode ser o de rapidamente pousar o livro, pouco predispostos a uma narrativa que parece claramente imersa num real já por si demasiado opressivo. Meses depois, Susana é forçada a sair do luto e, até porque não consegue dormir, dá por si a fazer um programa de rádio nocturno, da meia-noite às seis, horário pouco nobre em que ninguém se liga. Mas nesse programa, que tem muito pouco de jornalismo, as directrizes são muito claras e exigem que Susana se mantenha muda, regra que ela acaba por quebrar, com resultados surpreendentes, quando certa noite um ouvinte faz o pedido de que «queria muito ouvir Caetano Veloso, «Cajuína», essa canção que pergunta, existirmos: a que será que se destina?» (p. 72) E esse parece ser o momento-chave de mudança para quem já nem se considerava uma jornalista, «como aliás tinham feito questão de lhe demonstrar várias vezes, aliás, questão de lho fazer ver várias vezes ao longo da sua carreira. Entreter não é informar. Ela sabia.» (p. 61)
Susana, tal como a autora deste livro, parece querer pegar em todo o excesso de realidade dos últimos tempos e dar voz àquilo que está para lá da espuma destes dias de instabilidade, doença e desconhecimento: «Os seus ouvintes entravam numa ilusão, da meia‑noite às seis sonhavam e era gratuito.» (p. 171) Até porque no meio de muitas vozes, as da rádio, as da música, e das mensagens aúdio de WhatsApp dos ouvintes, há outros que optam simplesmente por deixar de falar.
Este é o trabalho magistral de Patrícia Reis neste livro, fazer um libelo das relações humanas e do companheirismo, conforme entretece as histórias de Susana, Rui Vieira e Miguel Noronha, atendendo ao contexto destes estranhos tempos que, todavia, servem apenas como moldura de uma janela que se estende muito além do que a comunicação social nos tem servido. Porque acima das estatísticas e dos números e do pânico resta-nos, ainda e sempre, o amor. E o riso: «o riso surgiu simplesmente dentro de si e estava a respirar, tinha encontrado espaço para sair. O riso, o que nos distingue dos animais, o riso dos homens é uma arma.» (p. 168)
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