Contos Cruéis, de Villiers de L’isle-Adam, é um texto essencial da literatura europeia do século XIX, agora publicado pela Cavalo de Ferro, pela primeira vez em versão integral em Portugal, numa excelente tradução de Diogo Paiva – a que não faltam inúmeras notas, a guiar o leitor.
Um dos fundadores do Simbolismo, Villiers de L’isle-Adam é um nome incontornável na literatura francesa, admirado por Baudelaire e Verlaine, contemporâneo de Edgar Allan Poe, e terá inspirado nomes como Théophile Gautier e Mallarmé. Contos Cruéis, originalmente publicada em 1883, é uma das suas obras mais célebres, ainda que de difícil classificação. No final do século XIX, em pleno século das luzes, justamente em Paris, “a cidade do Extraordinário”, assiste-se ao expoente do progresso científico, do positivismo e do materialismo, pelo que, na literatura, alguns autores, procuram justamente redescobrir o inefável, como contraposição à era moderna. Um conjunto de 28 contos, bastante díspares, onde convivem temáticas ainda assim afins e harmonizadas por uma prodigiosa prosa, imbuída de ironia e lirismo.
Alguns contos, como «A Máquina de Glória s.g.d.g.», constituem uma crítica, cheia de humor e subtileza, ao progresso e à ciência (não faltam referências a andróides) que ameaçam até suplantar o homem; outros, como «A Afixação de Cartazes Celeste», mantêm o tom irónico enquanto simultaneamente incorrem em hipóteses próximas da ficção científica; em «O Conviva das Últimas Festas», aproximamo-nos mais do horror, ao conhecer alguém movido pelo desejo homicida; por vezes, parecemos mais próximo da narrativa histórica – no último conto, «O Anunciador», que surge como epílogo, há um desejo de regressar ao passado, a outras eras, que se traduz num revivalismo dos tempos bíblicos; vários contos ainda aproximam-se do insólito, quase sempre em torno de mal-entendidos, com desfechos ora dramáticos («Impaciência da Multidão»), ora divertidos («A Desconhecida»). Poucos contos, como «O Inter-signo», aproximam-se mais daquilo que Todorov classificaria de puramente fantástico, não fosse o facto de o narrador anunciar que irá recontar factos verídicos e inicia de imediato com uma imprecisão, ao situar os eventos durante um solstício de Outono (o que não existe). À parte isso, as páginas que se seguem intentam contar um episódio “insólito”, capaz de provocar estremecimentos e medo no leitor, a condizer com os do narrador que experienciou os eventos em primeira mão. Por fim, há em vários contos um forte pendor sentimental e romântico, mesmo quando a temática do amor tergiversa para uma ambiência fantasmática («Véra») – com maridos que fazem o tempo parar e se fecham em casa como num túmulo, na esperança de ressuscitar a mulher –, ou quando se torna imbuída de uma crítica social tão mordaz quanto divertidamente irónica – como acontece no primeiro conto desta colectânea, em que uma jovem prostituta se deixa morrer feliz quando o rapaz por quem se deixou apaixonar finalmente lhe estende umas moedas no leito de morte («As Meninas do Bienfilâtre»).
Auguste Villiers de L’Isle-Adam (1838-1889) foi um poeta, dramaturgo e contista francês que se destacou sobretudo no género fantástico, na criação de uma prosa poética e no recurso à ironia.
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