Em resposta a esta pergunta, Mary Midgley escreve um manifesto em que analisa e entretece algumas das questões mais prementes da actualidade, como o papel das humanidades na educação, o aquecimento global, e em particular as consequências da evolução científica e tecnológica.
Procurando responder aos materialistas que alegam que só a máquina e a ciência interessam à vida, a autora demonstra como até os escritores de ficção científica foram capazes de antever os perigos da supremacia constantemente atribuída à matéria, como no caso dos cientistas que apregoam as virtudes da inteligência artificial e da superioridade do computador ao homem mas são incapazes de perceber que passar da confiança em Deus para um mundo regido por máquinas é passar ao lado do poder da nossa mente e do nosso livre-arbítrio como a única forma de encontrar respostas e tomar decisões sensatas.
A primeira parte do livro, apesar da linguagem clara, é um pouco mais vaga, talvez porque a autora se aproxima do tema que lhe interessa numa circunvolução, e só a partir de metade do livro é que une as pontas das várias ideias que foi colocando como pistas. Ela própria parece reconhecer esse método de abordagem quando a certa altura afirma: «As pessoas perguntam-me por vezes qual é o tópico sobre o qual investigo e eu respondo que não faço a mínima ideia» (p. 23). Começando por alertar para os perigos da crescente especialização e compartimentação do saber, a autora procura depois defender como a filosofia, ciência que levanta mais perguntas do que respostas, é essencial à formação do ser humano, sendo a sua tarefa central «lidar com problemas que são radicalmente irresolutos» (p. 64): «A filosofia olha para as diferentes maneiras de pensar e tenta mapear a sua relação. É uma forma de dar sentido ao todo. (…) Assim, a razão pela qual alguns filósofos acabam por ser recordados não é por terem revelado novos factos, mas por terem sugerido novas formas de pensar que implicam novas formas de viver» (p. 73).
Recorrendo às palavras da escritora Iris Murdoch, Mary Midgley procura explanar como é insuficiente pensarmos que o mundo se cinge ao visível e palpável, quando afinal somos seres modelados social e culturalmente: «cada um de nós tem um mundo com um grande enquadramento que a nossa cultura nos fornece já pronto» (p. 69). E nessa compreensão do mundo em que emergimos e imergimos a literatura tem, a par da filosofia, um papel crucial para «figurar e compreender situações humanas» (p. 70), além de que a própria ciência se subsume em conclusões, tecidas com palavras, cuja influência na nossa saúde e sanidade mental é tão poderosa como a nossa dieta e capaz de enraizar hábitos profundos.
Este livro é uma análise lúcida de uma mente brilhante, com a capacidade de clarificar o complexo e de não se deixar desviar das questões verdadeiramente essenciais à vida, ao contrário dos materialistas que reivindicam a era da tecnologia e da máquina (um “escravo sem mente”) como o único e desejável futuro: «As confusões que agora afligem a vida humana não são sobretudo devidas a falta de inteligência, mas a causas humanas vulgares, como a ganância, o preconceito, a parvoíce, a avareza, a ignorância, a ira, a falta de bom senso, a falta de interesse, a falt de sentimento público, a falta de trabalho em equipa, a falta de experiência, a falta de consciência e talvez devido sobretudo à ausência de reflexão.» (p. 210)
Mary Midgley foi professora de Filosofia na Universidade de NewCastle entre 1962 e 1980. Escreveu profusamente sobre a natureza humana, a ética, a ciência, o ambiente, e faleceu o ano passado, no mesmo ano em que este livro foi publicado, agora traduzido e lançado entre nós pela Temas e Debates. E porque escreveu a autora este livro – ou porque se defende aqui a sua leitura essencial?
«O que faz com que escreva livros é em geral a exasperação contra todo o credo redutor, cienticista, mecanicista e fantasista que continua a distorcer constantemente a imagem do mundo da nossa era. Esse credo (…) continua a ostentar o lisonjeiro nome de mentalidade “moderna”.» (p. 211)
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