«Há muito tempo, na ilha de Creta, uma mulher engravidou e, quando se avizinhava a data do parto, o marido, que era um homem de boa índole, foi ao seu encontro e disse: se for menino, podemos ficar com ele; mas, se for menina, não.» (p. 75) A mulher aterrorizada com a ideia de ter de matar a sua filha, foi ao templo de Ísis rezar, e a Deusa apareceu-lhe, confortando-a de que tudo iria correr bem. Quando a criança nasceu era uma menina e a mãe criou-a como se fosse um rapaz, baptizando-a com o nome Ífis, comum a ambos os sexos.
Volto a esta fantástica colecção da Elsinore de Mitos reescritos por grandes autores. Rapariga encontra Rapaz é uma reinvenção do mito de Ífis, incluído nas Metamorfoses de Ovídio, transpondo essa história para a contemporaneidade e para os seus problemas.
Anthea e Imogen Gunn são duas irmãs que vivem em Inverness, na Escócia, mas completamente diferentes. Anthea é idealista, ao ponto de não conseguir permanecer a trabalhar na empresa Pura, que faz da água potável o seu negócio, até porque é um bem essencial e um produto perfeito por estar a esgotar-se. E no dia em que um rapaz começa a grafitar a placa com o logótipo da marca com a mensagem «A água é um direito humano. Vendê-la seja de que maneira for é moralmente condenável.» e assina como Ifís, Anthea não resiste a ir ao seu encontro apenas para ser avassalada por uma tempestade interior quando ele se vira de frente para ela:
«Era o mais belo rapaz que alguma vez vira.
Mas parecia mesmo uma rapariga.
Aquela rapariga era o mais belo rapaz que alguma vez vira.» (p. 44)
Imogen é a irmã que permanece na empresa, a dar o seu melhor desempenho, envergonhada por Anthea que entretanto se torna lésbica. Até que o chefe a promove para o Departamento da Narrativa Dominante da Pura, onde «Desmentir Desacreditar Reformular» será a sua função, de modo a desacreditar notícias, com estudos fundamentados e estatísticas fidedignas, que contestem o produto que comercializam, acusando-as de terrorismo cibernético.
O trabalho de Ali Smith sobre a linguagem é, como sempre, de elevada beleza, transpondo a força do mito e o sentimento da poesia para o nosso quotidiano, contrabalançando o perigo em que colocamos o mundo:
«Graças a nós, as coisas fundiam-se numa só. Tudo era possível.
Antes de nós, desconhecia que cada veia no meu corpo era capaz de transportar luz, como um rio visto de um comboio esculpe na paisagem um canal de céu. Na verdade, desconhecia que podia ser muito mais do que eu própria. Desconhecia que um outro corpo podia fazer isto ao meu.
Agora tornara-me um rastilho ambulante, como naquele poema sobre a flor, e a força, e o verde rastilho através do qual a força impede a flor; a força que arranca as raízes das árvores arrancava agora as raízes de mim, era como uma espécie que nem se dera conta de que vivia num quase-deserto até ao dia em que a sua raíz mestra achou a água.» (p. 71)
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