«A vida de Agustina era a escrita» – Entrevista a Isabel Rio Novo
O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo, publicado pela Contraponto, lê-se como um romance. Contudo, apesar de nos últimos anos serem várias as biografias romanceadas ou os romances que se assumem como biografias, é um erro assumir O Poço e a Estrada como tal. A biógrafa rodeou-se de documentos e depoimentos, de fotografias, visitou os lugares por onde a própria Agustina transitou, leu e releu a obra de Agustina – destrinçando o quanto ela contém de episódios factuais da vida da escritora –, citando-a sempre que possível, como quem recupera a voz da autora para contar a sua própria história, a real e a recriada. Quando a autora não é detentora de uma resposta inequívoca, aventura várias hipóteses, para que o próprio leitor se decida pela que lhe convir. Se há laivos de romance nestas 416 páginas (não contando com notas e índice remissivo) é pelo lirismo da prosa de Isabel Rio Novo. O título é retirado da obra O Manto, de Agustina, e proliferam no livro as citações da autora e da sua obra em epígrafe, no corpo do próprio texto, bem como a relação entre a sua escrita e a sua própria vida, da forma como a vida dá corpo à ficção agustiniana.
Isabel Rio Novo, nascida no Porto, é mestre em História da Cultura Portuguesa e doutorada em Literatura Comparada. Professora universitária e investigadora, lecciona disciplinas como História da Arte, Estudos Literários, Escrita Criativa. Em diversos momentos desta biografia, a biógrafa não se esquiva aliás a traçar um panorama geral cultural do Portugal em que Agustina viveu e avança com a sua própria análise crítica do contributo prestado à literatura pelas obras de Agustina, da novidade que constituíram, das influências que evocam.
A obra de Agustina não é fácil de ler, e assim tem sido referido desde o início pela crítica, apesar de A Sibila chegar a fazer parte dos programas do secundário e ter encantado a sua quota parte de leitores.
Conforme será referido na entrevista, esta biografia, apesar de aguardada com expectativa, tem sido igualmente recebida com alguma polémica. O editor da Contraponto, Rui Couceiro, tenta justamente destrinçar essa confusão no Jornal de Letras (10 a 23 de Abril), em resposta às acusações tecidas por Mónica Baldaque, a filha de Agustina, numa entrevista ao semanário Sol, em que acusa e censura o trabalho da biógrafa aqui entrevistada, cuja candidatura a membro do Círculo Agustina Bessa-Luís foi inclusive negada em Outubro de 2018.
Agustina nasceu em Vila Meã no dia 15 de Outubro de 1922. No início de 2007, terá sofrido o primeiro de um conjunto de micro-acidentes vasculares cerebrais. O seu último romance, A Ronda da Noite, surgiu no final de 2006 e pode ter dado origem ao filme homónimo de Peter Greenaway (Nightwatching, no original), realizado no ano seguinte.
Agustina Bessa-Luís deixa-nos uma obra com mais de cinquenta títulos, entre romances, contos, biografias, ensaios, livros de memórias, num constante diálogo com a memória, com a literatura, com a história, numa escrita pouco popular, nada convencional, labiríntica, a pedir tempo e dedicação, frequentemente pontuada de aforismos e máximas que se tornaram uma célebre imagem de marca.
O Poço e a Estrada inaugura uma coleção de biografias de grandes figuras do século XX por autores romancistas, com a chancela da Contraponto.
Até que ponto o acto de biografar alguém é também um acto de antropofagia? Até que ponto é que o biógrafo, neste caso a biógrafa, corre o risco de se perder na vida da biografada e como se ressurge de uma vida assim?
Logo à partida compreendi que o risco e o desafio eram enormes, pela dimensão da pesquisa que se impunha, pelas múltiplas vertentes em que se investiu a minha biografada, pela minha própria admiração pela obra de Agustina. Tudo isso tornou este percurso apaixonante e realizado com muito gosto, mas também muito exigente, cansativo e desafiante. Ressurge-se do mergulho numa vida assim assumindo que o trabalho está feito, que é preciso despedirmo-nos dele e partirmos para o seguinte, compreendendo que nenhuma narrativa de uma vida humana é definitiva e que, como disse Agustina, no final de algo, “o que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa”.
Alguém escreveu que a biógrafa evidencia contenção emocional mas permitimo-nos discordar. Numa contemporaneidade em que a ficção literária cruza ensaio e autobiografia, é justo também sentirmos esta biografia como uma autobiografia?
Penso que a intenção do editor Rui Couceiro, ao convidar para esta coleção de biografias de grandes figuras do século XX autores romancistas, era fazer com que estas narrativas biográficas, mais do que meras resenhas cronológicas ou repositórios de factos, pudessem ser lidas como literatura de não ficção. Identifico-me completamente com o posicionamento daqueles que defendem que o biógrafo deve deixar transparecer a sua sensibilidade, o seu olhar, a sua presença, e não ter receio de estabelecer uma relação afetiva com o biografado e com os factos narrados. François Dosse, um biógrafo francês que aprecio, fala mesmo da importância da encenação da relação entre o biógrafo e o biografado. Por isso, não receei colocar-me no livro; pelo contrário, assumi essa postura, que para mim era a única que fazia sentido. O que, no entanto, me parece perfeitamente compatível com a contenção emocional, já que procurei evitar grandes derrames de subjetividade e não cair na lamechice. Quanto aos rótulos e à discussão sobre géneros, deixo-a para os críticos e os teóricos…
A Isabel revela-nos sobre si, e mesmo quando tenta a imparcialidade, em momentos menos bons da vida de Agustina, sente-se a sua admiração pela escritora ao mesmo tempo que desvela um pouco de si própria. Considera que esta biografia foge aos moldes, porque se quebraram as regras da biografia assim como as do romance, ou não foi pensado dessa forma?
Pois, voltamos à questão dos géneros e das classificações. Como romancista, é verdade que, à semelhança de muitos autores que escrevem na atualidade, me interessa cada vez mais apagar as fronteiras entre romance, biografia, ensaio, explorar os limites da ficção e da não ficção. Ao fim e ao cabo, penso que ao leitor interessa sempre mais a qualidade do que vai ler do que a sua catalogação. No caso da escrita biográfica, quanto a mim, o escritor deve assumir uma responsabilidade para com a verdade que não anule a imaginação.
Calculo que tenha sido um trabalho árduo, não só por ouvir tantas partes, como pesquisar as mais variadas fontes documentais, e reler toda a obra da autora. Como se mantém o norte num projecto destes?
Como em qualquer projeto de investigação que se pretende extensivo e rigoroso. Definindo um cronograma e uma metodologia, ainda que depois esse cronograma e essa metodologia sejam progressivamente reequacionados à medida que o trabalho progride.
Qual foi a sua rotina de trabalho? A sua metodologia?
Comecei por reunir os documentos e ficheiros que possuía sobre a obra de Agustina, já que venho trabalhando sobre ela em contexto universitário desde o início do milénio. Em seguida, recolhi todas as parcelas de informação que fui encontrando: resenhas biográficas, entrevistas que Agustina concedeu e outras peças jornalísticas sobre a escritora, documentários, registos oficiais, sendo que uns iam fornecendo pistas para procurar outros. Ao mesmo tempo, elaborei um plano de entrevistas. Não consegui entrevistar todas as personalidades que constavam dessa lista inicial. Em contrapartida, muitas vieram ter comigo por sua iniciativa. E muitas não me ofereceram apenas entrevistas ou depoimentos. Franquearam-me os seus arquivos privados, disponibilizaram correspondência e outros documentos raros, chamaram-me a atenção para publicações obscuras, escritos dispersos e ocasionais, sugeriram-me outros entrevistados. A consulta da correspondência de Agustina, espalhada por diversos arquivos e espólios, foi determinante para a compreensão da faceta mais privada da autora, por assim dizer. Procurei também conhecer ou revisitar os cenários mais importantes da vida da minha biografada. A visita aos lugares é muito importante para mim, mesmo quando escrevo um romance.
A biografia concretiza-se sem o aval da família, constando-se aliás que a Relógio d’Água que comprou os direitos da autora à Babel, numa situação bastante polemizada, já encomendou uma biografia oficial ao historiador Rui Ramos. Este constrangimento parece, aliás, ter-lhe conferido liberdade, apesar de não poder beneficiar do acesso ao arquivo familiar da autora. O que nos pode dizer sobre esta não-autorização?
Em relação à cronologia dos factos relativos a edições e ao posicionamento da família de Agustina, não tenho nada a acrescentar ao que o editor Rui Couceiro explicou recentemente no Jornal de Letras, aliás, de forma cabal e inequívoca. No que respeita à não autorização propriamente dita, apenas posso dizer que a encarei não como uma interdição, mas como um estímulo. Sobre a obra e a vida de Agustina Bessa-Luís podem e devem escrever-se várias biografias, porque a sua vida e obra extraordinárias assim o justificam. Como tenho dito várias vezes, cá estarei para ler todas as que forem surgindo.
Pode esta biografia levar a outros textos? Surgiram-lhe outros projectos?
Nunca se pode dizer que um livro não possa dar origem a outros textos. Neste momento, por exemplo, dei por concluído um romance que estabelecerá pontes com um conto que publiquei há algum tempo e que creio que dará origem a outra narrativa. No que toca a Agustina, de concreto, para já, há apenas o projeto de gizar o plano de uma comunicação para um congresso acerca das relações entre Agustina, Sophia e Jorge de Sena.
Apesar de termos quase 100 páginas de notas, e um índice remissivo, sente-se a falta de uma fotobiografia e de uma bibliografia da autora. Estas hipóteses foram levantadas pela editora?
Não incluir no livro uma iconografia foi opção do editor, opção que, aliás, se estenderá aos restantes volumes da coleção. A questão do índice de obras da autora foi equacionada, mas optou-se por não a incluir, ainda que não esteja posta de parte a hipótese de fazermos esse e outros ajustes em futuras reedições.
A dada altura, o fôlego da biografia parece perder-se, mas não a narrativa nem a riqueza da informação. Será que Agustina, deixando-nos tão magnífico legado, com mais de 50 obras, vivia tão devotada à escrita que pode ter passado ao lado da vida?
Parece? Não senti isso, confesso. A vida de Agustina era a escrita, como a própria admitiu e esclareceu, muitíssimas vezes. A rotina de trabalho que consolidou ao fixar-se definitivamente no Porto, nos anos 70, implicava uma dedicação total à escrita, uma entrega de natureza quase mística, com a relegação para segundo plano de tudo o resto. Por isso, ao lado da vida, pelo menos tal como ela a entendia, Agustina não passou, certamente.
Percebe-se no texto, mas gostava de saber qual é a sua obra favorita de Agustina?
No capítulo final, refiro alguns dos meus livros favoritos de Agustina: Um Cão que Sonha, Embaixada a Calígula, Fanny Owen, Homens e Mulheres, A Ronda da Noite. Tenho de escolher só um? Vou fazer batota, e escolher dois. Fanny Owen foi, até 2006, o meu favorito. Tem tudo para me agradar: a sombra de Camilo, a revisitação do imaginário romântico, grandes temas agustinianos, como o das pulsões misteriosas que comandam as personagens, e implicitamente, até Manoel de Oliveira, que o adaptou para cinema. Mas em 2006 surgiu o extraordinário A Ronda da Noite, repleto de enigmas e de ressonâncias autobiográficas, o que, para uma biógrafa…
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