Os Abismos, de Pilar Quintana, com tradução de Pedro Rapoula, é uma das novidades da Dom Quixote na rentrée editorial. Um ano depois de A Cadela, um dos grandes livros de 2021, finalista do National Book Award em 2020, Pilar Quintana presenteia-nos com um romance de tensão psicológica crescente, que recebeu o Prémio Alfaguara 2021. São cerca de 200 páginas que precisam ser lidas de uma assentada, tal como acontecia no romance anterior. A linguagem é igualmente límpida e sóbria, mas a narrativa é-nos agora contada pela perspetiva de uma criança, permitindo ao leitor partilhar da sua perspetiva ingénua dos acontecimentos. Contudo, a ingenuidade, e com ela a infância, também tem um fim…
Claudia tem cerca de nove anos e é filha única. Os acontecimentos que nos relatam giram sempre à volta da mãe, que apelida a filha de “homónima”. O pai, com idade para ser seu avô, passa os dias no supermercado, que gere com a irmã, pelo que Claudia só recebe afeto, silencioso e distraído, quando ele chega a casa ao final do dia. Enquanto isso, a casa ganha vida própria, com uma selva de plantas que parecem sobreviver mesmo sem cuidados, adensando o mistério no coração da narrativa – à semelhança do que acontece em A Cadela, a natureza selvagem e indómita parece uma analogia das pulsões mais profundas das personagens femininas.
Claudia-mãe decidiu não trabalhar pois não queria ser uma mãe descuidada como a sua. Curiosamente, ambas as mães passam o tempo todo em casa, e Claudia acaba por ser tão ausente, mesmo estando presente, e fria com a filha, como a sua mãe foi com ela. Claudia-filha consegue a proeza narrativa de nos dar conta da indiferença e por vezes mesmo do desprezo da mãe sempre de forma isenta, distanciada, como se nem se apercebesse do desamor a que é votada. Depois de uma história que corre mal, a mãe, em depressão, prefere claramente ficar na cama a ler revistas, perdida em histórias trágicas de atrizes como Grace Kelly ou Natalie Wood, ou o desaparecimento inexplicado de Rebeca.
Ao longo da narrativa, são múltiplos os abismos que surgem e inúmeras as alusões a finais trágicos de mulheres infelizes, presas em casamentos inanimados, criando-se um ambiente opressivo e desanimador para uma criança que apenas reclama algum afeto físico e algum elogio da mãe ensimesmada. Por fim, quando Claudia finalmente compreende que a mãe nunca a tratará com o carinho que ela dedica à sua boneca Paulina, é a altura de tomar o seu destino nas mãos, abandonando definitivamente a ingenuidade e, também, a sua inocência.
“Queria enfrentar novamente o abismo, sentir qualquer coisa agradável na barriga e aquele medo, a vontade de saltar e fugir.” (p. 124)
Os Abismos não nos atinge visceralmente como o romance anterior, em que as peças só se encaixam quando saímos da história e nos permitimos respirar. Há um paralelismo claro com o romance Rebecca, de Daphne Du Maurier. A pujança desta narrativa reside na sobriedade da escrita, nos indícios subtis que espelham o triste drama de uma criança que medra como uma planta bravia, apesar do descuido e agruras e, muito especialmente, no anulamento da autora, que deixa os mecanismos narrativos falarem por si.
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