Órix e Crex – O Último Homem, de Margaret Atwood, publicado no final do ano passado pela Bertrand Editora, é uma reedição de uma autora há muito aclamada internacionalmente e que tem sido agora reprojectada, após o sucesso de A História de uma Serva.
Um homem, que em tempos se chamou Jimmy, vive numa árvore, embrulhado num lençol, e autodesigna-se como Homem das Neves.
O mundo em que cresceu já não existe. Mas o mundo em que Jimmy vivia também já não era o nosso mundo. Os lençóis freáticos costeiros tornaram-se salgados, o subsolo gelado do Norte derreteu, o mar subiu inesperadamente e tragou cidades da costa leste, a vasta tundra borbulha com metano, a seca alastra no interior, as estepes transformaram-se em dunas e a carne é quase inexistente. Esta sensação de fim do mundo desculpa os homens a aventurarem-se cada vez mais para lá dos limites da ética, nomeadamente fazendo experiências em que cruzam espécies animais (e quase todos os animais são agora híbridos). O Homem das Neves é ele próprio o único sobrevivente da espécie Homo Sapiens que dominou o mundo ao ponto de o conseguir aniquilar: «o mundo inteiro transformou-se numa vasta experiência incontrolável» (p. 244). E é também uma espécie de Deus para os Filhos de Crex, um grupo de humanos (?) aperfeiçoados, mais uma experiência de laboratório que é agora responsabilidade sua: «Apesar das suas irritantes qualidades – entre as quais se contam o otimismo ingénuo, a franca cordialidade, a calma e o vocabulário limitado -, sente ser seu dever protegê-los. Intencionalmente ou não, foram deixados ao seu cuidado e nem sequer fazem ideia. Também não fazem ideia, por exemplo, de como são poucos adequados os cuidados que ele lhes dispensa.» (p. 165)
O problema é que os Filhos de Crex a certa altura começam a fazer arte e a praticar uma espécie de religião. Pelo que é possível se inicie novo ciclo de auto-destruição…
Alternando entre a vida de Jimmy e o presente intemporal do Homem das Neves, a autora, como é usual, vai desfiando gradualmente a sua narrativa, deixando cair a conta-gotas as informações essenciais que ajudem a compor o enigma em que nos vemos mergulhados a cada livro seu.
Atwood nunca se perde nos detalhes da ciência, mas nem por isso deixa de nos dar uma narrativa convincente de uma distopia assustadoramente possível. Afinal o Homem das Neves foi o único sobrevivente, graças a uma vacina cujos efeitos Jimmy desconhecia, de um vírus criado em laboratório que em poucos dias surgiu em pontos dispersos do planeta e rapidamente dizimou a população: «Na primeira semana foram emitidos avisos para ferver a água e não viajar, e também foram desaconselhados os apertos de mão. Na mesma semana houve uma corrida às luvas de látex e aos filtros em forma de cone para o nariz. Quase tão eficazes, pensou Jimmy, como as laranjas espetadas com cravos-da-índia durante a Peste Negra.» (p. 359)
Contudo o Homem das Neves é também um exemplar lamentável da espécie humana, que não dá grandes esperanças ao leitor de um futuro melhor. Preso entre um «passado que não pode recuperar», um «presente que o destruirá quando olhado desassombradamente» e um futuro de «pura vertigem» (p. 159), a mente de Jimmy começa a raiar a insanidade e é às palavras que ele se agarra: «Quem lhe dera ter alguma coisa para ler. Para ler, para observar, para ouvir, para estudar, para compilar. Pedaços soltos de linguagem flutuam-lhe na mente: mefítico, metrónomo, mastite, metatársico, mimalho.» (p. 160)
Margaret Atwood é uma exímia contadora de histórias, de um arguto humor negro, além de ser capaz de uma visão acutilante do mundo e da humanidade em tempos de incerteza – e por isso esperamos que a Bertrand continue a reeditar a sua obra.
A autora nasceu em Otava em 1939. É a mais célebre autora canadiana e publicou mais de quarenta livros entre ficção, poesia e ensaio. Recebeu diversos prémios literários ao longo da sua carreira, incluindo o Arthur C. Clarke, o Booker Prize, o prémio para Excelência Literária do Sunday Times (Reino Unido), a Medalha de Honra para Literatura do National Arts Club (EUA), o título de Chevalier de l’ Ordre des Arts et des Lettres (França), tendo sido a primeira vencedora do Prémio Literário de Londres.
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