O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, por Djaimilia Pereira de Almeida, é o segundo volume da coleção de não-ficção literária da Companhia das Letras. Publicado em outubro, este livro de bolso constitui-se como um tríptico, onde figura o ensaio que confere o título, uma conversa da autora com Stephanie Borges e o texto «A Restituição da Interioridade», apresentado na Universidade de Nova Iorque em 2023, onde a autora lecciona.
«O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo» (2022) é um ensaio profundamente pessoal, entre o cerebral e o lírico, em que a autora, uma das maiores vozes literárias portuguesas da atualidade, problematiza o lugar da mulher, especialmente a mulher negra, enquanto escritora no mundo presente. Em capítulos breves, com frases lapidares, num discurso solto, fluído, a autora intercala a reflexão e a memória pessoal, num crescendo gradual, onde as interrogações parecem aliás superar as respostas.
“Fosse eu minha trisavó, preta de carapinha dura, e o meu destino seria o chicote. Ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, uma mulher deste tempo, é escrever contra esse facto, carregando-o às costas, sem deixar que ele me tolha.” (p. 11)
A autora elenca como primeiro privilégio o facto de ter nascido em 1982, pois se tivesse nascido há sete ou mesmo cinco décadas, não teria a liberdade, e o desafogo, que hoje lhe assiste e lhe possibilita espaço para a escrita. O tempo torna-se assim crucial, pois em vez da página em branco poderia ter, como destino, a cozinha ou a roça. Fruto da união entre pai branco e mãe negra, a ensaísta coloca em contraponto duas questões decisivas para a sua própria identidade que vão muito além da pele ou do cabelo. Saída de África e tendo chegado a Portugal em menina, com o pai, que se esforçava por negar a diferença da filha – pois na esperança de lhe fazer acreditar que ela não era negra esperava protegê-la –, fica latente a crença de que a mãe, negra, a poderia ter ensinado a compreender-se. É aliás curioso, e parece-nos sintomático, que seja com a publicação do seu primeiro livro (Esse Cabelo), segundo escreve a autora, que “a minha cor de pele deixou de ser entre nós um tabu invisível” (p. 18). Na noção da diferença (negra e rapariga numa casa de homens e rapazes), e na falta de uma figura (maternal ou da sua cor) que a eduque, fica no ar a incerteza de realmente se conhecer por dentro como mulher negra. É, contudo, na escrita que ela se tenta encontrar: “Foi escrevendo que me encontrei com a minha pele.” (p. 26)
Uma escrita que, assim nos deixa adivinhar, entende como demasiado cerebral (se bem que ao ler estas páginas a emoção escreve-se mais sonante do que o artificialismo ou o fingimento de uma máscara literária. É assim a escrita que surge como a sua “mãe negra”, categoria que, simultaneamente, tenta evitar, se isso significar ver-se reduzida a uma etiqueta.
Djaimilia Pereira de Almeida escreveu, entre outros o premiado Luanda, Lisboa, Paraíso, assim como Esse Cabelo, Maremoto ou Três Histórias de Esquecimento. A sua obra encontra-se traduzida em dez línguas e recebeu inúmeros prémios, em Portugal e no Brasil, incluindo o Prémio Oceanos. Escreveu no New York Times, Granta, Words Without Borders, La Repubblica, Folha de S. Paulo, Neue Zürcher Zeitung, Serrote e ZUM, entre muitas outras publicações. Na Primavera de 2022, foi a escritora residente da Literaturhaus Zürich. Em 2023, foi distinguida com o Prémio FLUL Alumni, atribuído pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se doutorou. Djaimilia vem colaborando com artistas visuais, compositores, actores e encenadores. Escreve na revista Quatro Cinco Um. É professora da New York University.
De Djaimilia só conheço Luanda, Lisboa, Paraíso. Lindo.
Honestamente? Vale a pena ler tudo.