Memória de Rapariga, de Annie Ernaux, com tradução de Maria Etelvina Santos, é o mais recente livro publicado pela Livros do Brasil que dá continuidade à publicação da obra da autora francesa laureada com Prémio Nobel da Literatura em 2022.

Originalmente publicado em 2016, escrito ao longo de 2014 e 2015, este magnífico testemunho sobre crescimento, desejo e vergonha, de uma autora considerada mestre da escrita memorialística, contrapõe a escritora de renome com a jovem que foi no Verão de 1958, com as suas pulsões e descobertas sexuais, justamente 10 anos antes da revolução (também sexual) do 28 de Maio.

Escrever sobre esse Verão era um projecto há muito adiado, por ser um exercício longo e doloroso, que permanecia entre os seus projetos de escrita: «o texto permanentemente em falta, sempre adiado, a falha inqualificável» (p. 15).

A contraposição entre a escritora hoje internacionalmente reputada e a filha de merceeiro é de tal forma divergente que a autora escreve sobre uma outra “ela”. A dissociação entre a rapariga da sua memória e a mulher que a tenta reevocar é de tal ordem desencontrada que Annie Ernaux escreve sobre Annie Duchesne, uma “rapariga alta, morena, de cabelo comprido” (p. 37), com óculos de míope, na terceira pessoa.

Uma memória que levou mais de uma década a se reconstruir – e paradoxalmente a desconstruir o eu do passado -, em que a autora dá corajosamente conta de uma bulimia, resultado da dissociação entre a jovem que está ainda em formação e a descoberta de um novo mundo em que se sente constantemente deslocada, mundo esse que só conhece, afinal, dos livros e filmes. O processo de rememorizar é aliás constantemente transmitido por referências a imagens e cenas, num processo de revisão do filme da sua vida ou do quadro da sua juventude.

Um livro que transmite ainda fortemente o processo de escrita da autora, e do seu desejo “de escrever sobre o que vive”, sem cair na tentação de transformar as personagens, que é o seu próprio eu feito tinta e papel, na inócua “imaterialidade de seres de ficção” (p. 37).

O lema da autora é, justamente, viver as coisas para um dia serem escritas, o que se torna muito claro neste testemunho destemido balizado, como se pode ler a certa altura, pelos limites do corpo do sangue e do alimento:

“Comecei a fazer de mim um ser literário, alguém que vive as coisas como se elas existissem para um dia serem escritas.” (p. 147)

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.