Manual Para a Obediência, de Sarah Bernstein, com tradução de Maria de Fátima Carmo, foi publicado pela Dom Quixote. Vencedor do Prémio Giller 2023 e finalista do Booker 2023, um pequeno livro de uma poderosa jovem voz, justamente escolhida pela Granta como um dos Melhores Jovens Romancistas Britânicos, que discorre num fluxo imparável, cheio de subtexto, com um ritmo sincopado perfeitamente ritmado pela exímia tradução de Maria de Fátima Carmo.
Uma jovem mulher, sem nome, muda-se da sua terra natal para a remota região setentrional dos antepassados, para ser uma governanta do irmão, recentemente abandonado pela mulher e filhos. É ela inclusivamente que o veste, como sempre gostou de fazer. Embora tivesse sido a filha mais nova de uma série de irmãos, foi ela que sempre teve a seu cargo servir os irmãos, o que a moldou desde cedo, aprendendo a anular a sua existência. É sintomático que ao sair do aeroporto esta mulher não seja sequer detectada pelo sensor das portas automáticas e que tenha de esperar por outro passageiro de saída… A esta espécie de não-existência junta-se, conforme as peças se ligam, e a narradora discorre sobre a sua vida, o facto de a própria família parecer sentir por ela uma certa aversão.
No seu trabalho, ela assume-se como uma espécie de médium, pois trabalha para um escritório de advogados como transcritora – nem sequer é conveniente que ela deite sentido aos áudios que transcreve, basta que escreva uma palavra após outra, martelando as teclas sem tentar retirar significado do conjunto.
Voltando aos dias que ela nos narra, na primeira pessoa, quando a certa altura o irmão a deixa sozinha na casa, muito pouco tempo depois de ali ter chegado, ocorrem vários acontecimentos inexplicáveis e as suspeitas dos habitantes recaem sobre si, estrangeira recém-chegada.
Um romance tão poderoso quanto intrigante, perturbante e torrentoso que remete para questões como o exílio, o desenraizamento, a herança cultural, o legado familiar e, sobretudo, a xenofobia. Há um ambiente quase medievalizante na forma como gradualmente a narradora dá conta do modo como a comunidade a estranha e lhe atribui a responsabilidade por tudo o que de estranho se passa. Sendo que ela própria parece possuída e tem gestos cuja motivação nem consegue descortinar, como se fosse um móbil, um veículo, para alguma outra força…
Sarah Bernstein nasceu em Montreal, no Quebeque. Vive na Escócia, onde é professora na Universidade de Edimburgo.
Tem vários textos de ficção, poesia e ensaio editados em publicações dispersas: Contemporary Women’s Writing, MAP e Cumulus.
Em 2023, foi escolhida pela Granta como um dos Melhores Jovens Romancistas Britânicos – numa selecção, pela prestigiada revista a cada dez anos, dos vinte escritores mais importantes com menos de quarenta anos.
Leave a Comment