Klara e o Sol é o novo romance de Kazuo Ishiguro, autor cuja obra integral é publicada pela Gradiva, premiado com o Nobel em 2017. Este é o oitavo romance de um autor já conhecido por algumas das suas particularidades, como explorar géneros distintos, se bem que com que uma certa propensão para a distopia ou ficção-científica, em cenários muitas vezes irrealistas. A narrativa é contada na primeira pessoa pela perspectiva de Klara, uma AA (não confundir com as pilhas), sigla de Amigo Artificial, desde os seus primeiros dias na montra de uma loja onde espera expectante que uma criança a veja e escolha, pois a função de um AA é ajudar a combater a solidão enquanto acompanhante de jovens adolescentes, num mundo desestruturado (nunca completamente explicado pelo autor) onde poucos adolescentes parecem sobreviver à poluição e ingressar na vida adulta, um mundo competitivo onde só os alunos que tenham beneficiado de «edição genética» (p. 283) podem ser capazes de ingressar numa faculdade e depois ter sociedade.
A perspectiva externa distanciada, através de uma narradora alienada, dá à história um tom de fábula ou narrativa infantil ao dar-nos a conhecer o mundo (mundo esse confuso, face a um rápido desenvolvimento tecnológico) pelos olhos de Klara que, apesar de inumana, tem em si algumas qualidades sobre-humanas que a colocam inclusive acima dos modelos mais recentes de AA: «A Klara tem muitas características únicas (…). Mas se quisesse salientar apenas uma, bem, teria de ser a sua apetência para a observação e a aprendizagem. A sua capacidade para absorver e integrar tudo o que vê à sua volta é espantosa.» (p. 55)
Klara, contudo, ao contrário de nós, vê tudo como que segmentado por caixas (e talvez por isso seja fascinada por padrões), ou a partir de diferentes ângulos, ao invés de uma perspectiva monista e redutora como a nossa: «Bebeu o café sempre a olhar para mim, até eu ver a cara da Mãe encher seis caixas só por si, os seus olhos semicerrados repetidos em três delas, sempre com um ângulo diferente.» (p. 121)
Klara não é, portanto, o androide comum de uma qualquer série de sci-fi, pois a sua aprendizagem faz-se a partir daquilo que experiencia e observa – «Creio que tenho muitos sentimentos. Quanto mais observo, mais sentimentos tenho disponíveis.» (p. 117) – o que a torna capaz de uma perspicácia incomum ao detectar os sentimentos das pessoas que vê passar frente à montra da loja e a torna mais do que humana na sua capacidade de sentir empatia. Capaz até de exprimir a realidade com uma certa carga poética, como quando é finalmente escolhida por uma jovem, Josie, e passa a ver o Sol das janelas da sua nova morada: «O céu que se avistava da janela traseira do quarto era muito mais vasto do que o intervalo de céu que se via da loja — e capaz de variações surpreendentes. Por vezes era da cor dos limões na fruteira, em seguida podia ficar cinzento como as pranchas de cortar, de lousa. Quando Josie não estava bem, podia ficar da cor do seu vómito ou das suas fezes descoradas, ou apresentar mesmo veios de sangue. Às vezes o céu ficava dividido numa série de quadrados, todos eles com tons diferentes de púrpura.» (p. 67)
Klara recarrega a sua energia a partir do Sol, astro que ela aliás personifica, ou melhor, deifica. E tal como o Sol, tal como os humanos, também ela conhecerá um declínio, quando terminar o seu ciclo de alguns anos apenas, alimentando-se das memórias que construiu.
Klara e o Sol, ao jeito da obra narrativa de Kazuo Ishiguro, é um acto de preservação da humanidade pela ficção, pois ao autor parece interessar sobretudo uma tentativa de retratar o mundo não nos seus detalhes superficiais (e por isso se detém tão pouco em aspectos tecnológicos deste novo mundo) mas sim na vida emocional que nos torna únicos, inclusivamente no caso de um robô que não deveria ser capaz de ter sentimentos – pois a inteligência artificial deverá ficar sempre aquém da emoção -, muito menos um robô capaz de rezar ou fazer promessas para que o Sol interceda com um milagre e cure a sua amiga humana.
«Deixa‑me perguntar‑te isto. Acreditas no coração humano? Não me refiro simplesmente ao órgão, como é óbvio. Estou a falar no sentido poético. O coração humano. Achas que tal coisa existe? Algo que torna cada um de nós especial e único? Vamos supor que existe. Nesse caso, não achas que, para conheceres verdadeiramente a Josie, terias de aprender não só os seus maneirismos, mas também o que existe no mais profundo dela? Não terias de conhecer o seu coração?» (p. 251)
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