O terceiro volume da tetralogia publicada pela Dom Quixote José e os seus irmãos, intitulado José no Egito, de Thomas Mann, retoma, sem pausas nem saltos temporais, a narrativa do volume anterior, no ponto em que ficámos, momentos depois de José ser socorrido do fundo do poço em que os irmãos o deixaram para morrer durante dias.

Ainda que tenha aprendido uma dura lição, que o levará daí em diante a ser mais contido nas palavras e no orgulho (e simbolicamente perdido o seu manto multicolor), José continua ainda a revelar «algo de tortuoso, ao mesmo tempo amável e malicioso, algo que conseguia cativar a atenção dos demais» (p. 419). É particularmente divertida a forma como ao ser resgatado por uma caravana de mercadores madianitas que o conduzirão até ao Egito (Egipto?) para o vender como escravo, José dirá ao ancião “que o levam” enquanto o velho responde «Mete lá na tua cabeça que és tu quem chega ao lugar aonde nos levam os nossos passos. Não vou para o Egito para te conduzir a tal destino, mas sim porque tenho lá negócios a tratar» (p. 33).

José será vendido como escravo a Putifar, o eunuco chefe dos guardas do palácio do faraó, enquanto mantém a sua absoluta confiança em Deus: «Acreditava, sim, que o Altíssimo forjava planos futuros, talvez ainda não completamente claros para a razão humana, a respeito da sua pessoa, tendo-o, por isso, arrancado à sua vida passada e lançado num mundo totalmente novo.» (p. 51)

Poder-se-ia até pensar que ao ter partido sem olhar para trás, e quase sem se deter a pensar em Jaacob, o pai que tanto o amava (e preferia aos outros filhos), José se prepara para uma nova vida, não fosse o facto de ele se considerar morto a vogar no reino do submundo – e é particularmente curiosa a ligação profunda e constantemente evocada e explicitada entre o Egipto e o Mundo dos Mortos, além de que José sempre ouvira Jaacob, o pai, dizer que o Egipto equivalia ao submundo.

Talvez por isso o esmero narrativo das descrições do Egipto são sempre absolutamente fantásticas e estonteantes, evocativas de um reino de riqueza e ostentação que pode até chocar a frugalidade do deus dos hebreus. Igualmente delicioso é a forma como o narrador constantemente se intromete na narrativa, numa modernidade pouco própria ao tempo, e se justifica ou explica perante o leitor.

Thomas Mann considerou esta «monumental narrativa da história bíblica de José a sua magnum opus», baseado num profundo estudo da História, com detalhes pródigos e convincentes, Mann evoca o mundo mítico dos patriarcas e dos faraós. Os quatro livros desta tetralogia são pela primeira vez traduzidos directamente do alemão, num trabalho notável e de fôlego da professora Gilda Lopes Encarnação, que nos oferece uma tradução cadenciada e lírica.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.