Não posso, antes de escrever sobre o livro, deixar de recordar uma amiga que me dizia que nunca, em várias tentativas, conseguiu persistir na leitura de A Montanha Mágica, pois a partir da página 100, e consoante a descrição do ambiente no sanatório se torna mais vívida, esta minha amiga é acometida por insistentes ataques de tosse numa qualquer reacção psicossomática que acabou por criar aversão ao livro.
Mas não quero com esta história, um pouco solta, desdourar o prazer desta leitura.
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas no âmbito da arte, literatura, cinema, com alguns contos e outros romances publicados, sendo finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017 com este livro, publicado pela Dom Quixote.
Na senda de outros autores recentemente apresentados, a autora cruza ficção com não-ficção, ensaio com documento, ciência com literatura, e inicia esta narrativa numa voz que enganosamente se assume na primeira pessoa, como um tuberculoso de vinte e três anos. Contudo logo em seguida a narrativa é quase toda feita a partir de um narrador externo, desfiando a história de uma família portuguesa na primeira metade do século XX, composta por três irmãos. Mas este eu que surge logo no início do romance, percebemos que é afinal Armando, que mais tarde dará entrada no Grande Sanatório do Caramulo, o que não pode deixar de evocar a memória de Hans Castorp de Thomas Mann naquela que é uma das obras-primas da literatura mundial. Entretanto, este narrador na primeira pessoa refere, recorrentemente, uma «rapariga» que visitou «ruínas» e «coleciona histórias de tuberculosos» (p. 16), rodeada de páginas de documentos e ensaios, como o da «ideia romântica da tuberculose e os escritores portugueses que foram suas vítimas» (p. 16). A autora entretece a narrativa com um levantamento da tuberculose, um dos principais flagelos da época, ao mesmo tempo que faz uma apreciação sucinta da forma como a doença afectou escritores portugueses e brasileiros da altura, que padeceriam dessa doença ou seriam tocados pelas suas asas. Revivificam-se nestas páginas nomes como António Nobre ou Júlio Dinis.
Para complicar um pouco mais, a narrativa está ainda pontuada por considerações histórias de como a doença foi sendo considerada ao longo do século, conforme o conhecimento sobre o seu diagnóstico e cura ia evoluíndo, com particular destaque para as citações extensas de um texto intitulado «Considerações sobre a morte, alinhavadas por R. N.» – note-se as iniciais, idênticas às do apelido da autora.
A autora disserta em torno desta «peste branca», a «doença que todos receavam» (p. 92), considerando como inclusivamente a tuberculose era muitas vezes vista, de início, como uma melancolia ou um torpor que acometia sobretudo os mais sensíveis, como poetas e escritores.
«A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.» (p. 92)
A doença da tuberculose, ainda sem tratamento médico e farmacológico adequado, representa um mal maior, permitindo à narrativa efectuar um diagnóstico político e social de Portugal. Este romance, onde a febre se reveste de significados distintos, e causas diversas, como a da paixão ou a do fibrilar de uma mente mais sensível, mas sobretudo como sintoma de doença, é um retrato de uma época e de um país doente, mesquinho por vezes, apesar de se ter fechado em si para evitar flagelos exteriores como a Segunda Guerra, sob o jugo do punho forte ou tirânico de Salazar, que era aliás uma visita regular do Sanatório do Caramulo. A Guerra Civil de Espanha e a Segunda Grande Guerra, aliás, traziam para a serra portuguesa «tuberculosos abastados dos grandes sanatórios europeus» (p. 102), sendo a Madeira outro espaço eleito para a cura desta doença.
Mas não se pense que se sai destas páginas com sintomas de tosse convulsa ou de algum sentimento de finitude secular mais adequado à morbidez ultra-romântica. Sai-se sim com a confirmação de que esta jovem autora é uma das novas vozes a reter na literatura portuguesa contemporânea.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.