Da próxima vez, o fogo, marca o regresso de James Baldwin ao catálogo da Alfaguara Editora (Penguin Livros), por altura do seu centenário. Depois de terem sido publicados 3 romances seus (todos aqui apresentados), que o confirmam como uma das grandes vozes da literatura norte-americana do século XX, chega-nos agora este ensaio, com tradução de Valério Romão. Um livro pequeno que se lê de um fôlego, até pelo tom que ainda que sempre contido e ponderado gradualmente se vai inflamando, composto por dois textos profundamente pessoais de natureza similar. O primeiro texto, «A minha masmorra estremeceu», trata-se de uma breve carta ao seu sobrinho, escrita no centenário da abolição da escravatura nos Estados Unidos e que embora mais confessional e familiar serve de introito ao que se segue.

O segundo texto, mais longo, intitulado «Aos pés da cruz – Carta de uma região da minha mente», constitui um manifesto sobre a raça, estabelecendo depois uma relação com a religião, a desigualdade social, a hostilidade perante o negro que gera actos de injustiça flagrante, o crime como única saída de vencer na vida, a condição muito singular do negro norte-americano (expatriado do continente africano, escravizado e humilhado), cuja cor foi inventada na América, não existindo no Islão ou em África.

“O céu do branco é o inferno do negro” (p. 64)

As considerações em torno da religião, que afinal legitima o poder do homem branco, ganham particular relevância, considerando que Baldwin chegou a ser um pregador, um jovem pastor, durante 3 anos, até perder a fé na crença católica…

A única solução, antes que toda uma raça seja dizimada como aconteceu umas décadas antes, pode bem ser o negro almejar a possibilidade de reclamar um espaço num continente que o importou mas nunca o acolheu e criar uma nação, onde possa redefinir a sua identidade e autoridade.

Este livro é um ensaio que, não obstante o título inspirado numa passagem bíblica, é mais contido do que incendiário, dirigido ao negro mas sobretudo ao homem branco norte-americano, fazendo ver como o problema do negro é, afinal, a forma como é percepcionado, discriminado e essencialmente “definido” pelo homem branco. Um texto que teve forte impacto na nação norte-americana quando publicado pela primeira vez, em 1963, sendo um dos primeiros a dar voz à luta do Movimento dos Direitos Civis.

James Baldwin, cuja obra tenho lido apaixonadamente, nasceu em Nova Iorque, em 1924, no bairro do Harlem, onde cresceu e estudou. Partiu para Paris em 1948, fugindo ao racismo e à homofobia que grassavam no seu país. Viveu nessa cidade quase uma década, envolvendo-se politicamente com movimentos de esquerda, convivendo com artistas europeus e americanos e dedicando-se à escrita. Destacou-se desde cedo como romancista, ensaísta, poeta e dramaturgo. A par da atividade literária, notabilizou-se como uma das vozes mais influentes do Movimento dos Direitos Civis e dos movimentos de libertação homossexual. Foi, aliás, o primeiro artista afro-americano a figurar na capa da revista Time. Em 1953, publicou o primeiro romance, Se o disseres na montanha (Alfaguara, 2019). Em Portugal, estão ainda publicados os romances O quarto de Giovanni (de temática homossexual) e Se esta rua falasse. Esperamos poder ler em breve os outros ensaios de Baldwin.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.