A desconstrução do silêncio
A Construção do Vazio, último romance de Patrícia Reis fecha um tríptico do qual faz parte No Silêncio de Deus (2008) e Por Este Mundo Acima (2011), todos publicados pela Dom Quixote. O Vazio de que a obra trata também pode ser interpretado como um silêncio. O silêncio declarado ou camuflado, através daquilo que se tenta abafar com palavras que são ruído a ocultar a verdade, é um dos fortes aspectos da obra, da mesma forma que predomina a noção do som. O som na forma de música, no seu efeito catártico de exprimir emoções ou libertar repressões, na ária Casta Diva de Bellini interpretada por Maria Callas, ou na música de piano que tantas vezes acompanha a escrita da autora, aqui com Ludovico Einaudi, ou nas palavras doces de um amigo que faz as vezes de amante. Como nos escreve Sofia: «O poder do som. O som como veículo emocional. O som no tom certo que é a voz de Deus. Pode ser.» (p. 109). Ou como quando refere que «O corpo pode ter uma voz, um som, uma música. O meu só tinha conhecido o silêncio, e depois a dor e o grito.» (p. 65). Até porque a única pessoa que a poderia ter salvo, e que a deveria ter amado e protegido acima de tudo, é essa mãe bonita que aparenta fragilidade, mas fria e distante: «Não se podia falar com ela. Tudo lhe fazia dores de cabeça e, na presença do meu pai, mirrava, um corpo a esforçar-se por desaparecer» (p. 11). O silêncio de Sofia é de tal forma que ela anuncia mesmo, apesar de entretanto já estar em terapia há sete anos, que «Não há palavras para a solidão a que cheguei.» (p. 133) enquanto ouve o seu corpo a envelhecer. E enquanto o ruído parece ser uma constante da Humanidade: «O barulho é infernal, uma cacofonia que agride.» (p. 109), é sem palavras que Sofia se fecha no seu mutismo e guarda o seu segredo, talvez apenas adivinhado pela amiga ao ver as suas nódoas, vendo-se a si própria como uma menina-desastre e depois como uma menina-tesoura para «cortar, cortar, cortar. Sempre a direito.» (p.60). E é a cortar o silêncio que a narradora (certamente ao serviço da autora) não está com rodeios no que respeita a descrever a violência de que Sofia é vítima. A linguagem, sempre tão pensada, chega a ser crua ao narrar sem rodeios a violação de Sofia pelo pai o que pode atingir os leitores como um murro no estômago: «Via as minhas cuecas, eu de pernas para o ar, eu a vê-las no chão e o meu pai a lamber-me na casa de banho, o sexo imberbe, e eu a perguntar, isto serve para quê? É suposto dizer o quê?» (p. 22). Sofia sem palavras para construir um sentido do que lhe está acontecer, entre um pai que a viola e uma mãe que a ignora ou agride. De joelhos no chão da casa de banho, sem um som nem mesmo para exprimir a sua angústia e dor pois se o pai cheirasse o seu medo, num instinto animal, seguia-se «a estalada e o silêncio. Sim, porque eu não chorava. Não valia a pena. Só gritei uma única vez. Um dia em que o meu corpo não podia enfiar-se no corpo dele ou o contrário, a guerra é estranha e já não sabemos onde estamos. Até se ter deitado comigo, depois de os dedos me terem aberto, o meu pai falou-me sempre baixinho, como se me dissesse um segredo. E eu calada. Sempre calada.» (p. 22). Sofia tenta tornar-se transpararente, mas «Apesar disso, dessa minha capacidade para o alheamento, passei a ser o escape dos dois. O meu pai violentava-me, a minha mãe ignorava e batia-me. Não havia a quem pedir socorro. Nunca o fiz.» (p. 29).
Fechar o ciclo
Ler Por Este Mundo Acima (obra já aqui apresentada no Cultura.Sul) ajudará ainda a compreender como esta narrativa que vem no fim pode afinal ser a primeira: «Vamos falar do passado para resolver o futuro?» (p. 149). Em A Construção do Vazio refere-se o ano de 2018 e que Lisboa vive um recolher obrigatório mas pouco mais saberemos. É apenas consoante nos aproximamos do final que percebemos como se fecha o ciclo enquanto Sofia vai desfiando o curso dos acontecimentos num encadeamento que poderia servir a uma qualquer distopia das várias que por aí proliferam agora mas que está sempre muito próximo da lógica irracional dos dias que se vivem nos nossos dias: «E, de repente, o Presidente dos Estados Unidos da América torna-se uma saudação tenebrosa de outros tempos. Os ataques começaram devagar e depois foram acontecendo, matemáticos, certeiros, explosivos. Há dois meses, o parlamento inglês fechou as portas. Foi declarado o estado de sítio. É certo que será permanente. Como se a esperança tivesse apagado a chama e o optimismo não tivesse mais argumentos. Vive-se a medo, come-se a medo, respira-se a medo. Ninguém grita.» (p. 141). A enumeração e a gradação que per dão conta de um clímax que se cria nestas últimas páginas que anunciam claramente que «estamos a chegar ao fim do mundo.» (p. 140). Cenário pós-apocalíptico que é o que encontramos nas páginas de Por Este Mundo Acima.
Porque Sofia é uma boneca quebrada e que faz dos seus cacos uma armadura mas, ainda assim, não deixa de estar revestida apenas e simplesmente por porcelana. O abuso que sofreu em criança marca-a (e divide-a) de tal forma que permanece em Sofia a recusa de cumprir o que o corpo lhe pede: «Era o meu corpo a pedir que lhe desse um outro uso. Era a minha cabeça a ver se tinha resolução. Um filho seria uma história necessariamente feliz.» (p. 136). Dividida entre o sentir e o pensar, Sofia escolhe a solução que acha mais lúcida: «nunca teria uma criança que pudesse ser abusada e, não sendo possível proteger os filhos da totalidade dos perigos do mundo, a ideia de os ter para o mundo era impensável.» (p. 136). A mácula que Sofia carrega em si, que parece criar uma visão deturpada no modo como percepciona o seu corpo, cresce até se tornar um cancro que a suprime, tornando-a frágil e vazia ao ponto de recusar conceber uma vida nova em si, acto supremo de amor que, como se percebe nas passagens anteriores, poderia significar, ao gerar uma nova vida, a renovação da sua própria vida. Esta sua história é inclusivamente contada numa sucessão de vazios, pelos hiatos que temos entre os vários capítulos onde acompanhamos o crescimento de Sofia em várias etapas muitas vezes apresentadas em saltos temporais: na infância, na juventude, depois aos vinte e seis, aos trinta e oito, aos cinquenta e cinco.
E é no final que nos deixa este testemunho escrito onde pela primeira vez rompe o silêncio dos muros que foi construíndo em torno do seu vazio, ao assumir pela primeira vez, com estas páginas que nos ficam como o seu legado, a sua história e o passado que vê como mácula, apesar de ser completamente inocente face a uma corrupção que lhe foi forçada a partir do exterior. É curioso que Sofia perceba, ainda assim, que a dor foi uma opção sua. Quando escreve sobre Lourenço e nos diz que, «se for sincera, teria sido um companheiro de vida se não fossem os conflitos que tive de ultrapassar, sobreviver, essa marca ou cicatriz que escolhi carregar.» (p. 72). E pouco depois, lemos como Sofia ouve como um eco mental o aviso da sua amiga Sara: «O sofrimento é opcional, Sofia, é opcional, opcional…» (p. 82).
Eduardo, o editor, o mesmo homem que encontraremos em Por Este Mundo Acima a relembrar permanentemente os amigos que perdeu é aqui esse amigo “especial” de Sofia que irá preservar a memória e identidade da amiga e guarda com desvelo a sua fotografia e as suas cartas. Nessa outra obra deste tríptico, ficamos a saber que Pedro, o jovem que acompanha Eduardo, «tem uma ideia muito vaga da mãe mas em contrapartida sabe tudo sobre Sofia» (p. 168) e quando pergunta se ela não era feliz, Eduardo responde-lhe: «Não, Pedro, nunca foi feliz. Ela dizia que não possuía essa vocação. Eu acredito que Sofia se limitou a deixar-se arrastar, com uma eficácia tremenda, para o lado mais triste da vida.» (p. 170). Paradoxalmente, Eduardo que parece escrever exclusivamente apenas para Sofia será talvez a única pessoa a descobrir o segredo dela ao ler os seus escritos. Esse testemunho que Sofia deixa sob a forma deste livro a Cecília, a sua terapeuta, que a acompanha ao longo de sete anos de psicanálise e a quem contou apenas mentiras a tentar ludibriar o caroço da verdade com cascas de mentiras e fantasias. Porque há verdades que continuam a cortar e a ferir mas mesmo quando reveladas em busca de uma justiça de pouco adiantam, como o caso referido da «mulher que fora abusada pelo marido – um pai é sempre uma espécie de marido – e que fora a tribunal, com testemunhas das sucessivas agressões, pronta para a humilhação de dar a cara. Perdera o caso por o júri ter considerado que “a provocação era feminina”.» (p. 50).
(texto publicado no Cultura.Sul Junho 2017)
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