Civilizações, de Laurent Binet, publicado pela Quetzal, com tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, apresenta-se, e lê-se, como um romance mas, não fosse a sua capacidade efabulatória, ao recriar a história da Europa, aproxima-se mais de um ensaio pelo registo sóbrio e fatual, com intromissões muito pontuais do narrador.

Partindo da premissa de terem sido os Incas a chegar à Europa, em vez de ter sido Cristóvão Colombo a descobrir a América, o autor faz uma revisão histórica próxima de um registo paródico neste livro tão delirante quanto alegórico: depois de uma tentativa fracassada de conquista do território Inca, este “Império dos Quatro Cantos” copia as embarcações dos espanhóis, obcecados com ouro e com “plantar cruzes” para o seu “deus pregado”, e partem rumo ao Hemisfério Norte.

Os Incas entram no “Novo Mundo” justamente por Portugal, deparando-se com um cenário de ruína que nos remete para o Grande Terramoto de 1 de Novembro de 1755; a forma como rapidamente conquistam, entre alianças e casamentos estratégicos, o “Quinto Canto” do mundo, deve muito às divisões internas entre os vários reinos europeus. Os Incas irão aliás governar com muito mais justiça e equidade, e advogar a superioridade da religião do Sol, ainda que sejam permitidas outras religiões.

Distinguido com o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa, Civilizações apresenta uma versão alternativa da História, num registo fatual: não há diálogos entre personagens nem espaço para especulação acerca das suas reflexões e dilemas, mas tão somente uma revisão historiográfica mediante uma narrativa sóbria, irónica, a que não faltam testemunhos que lhe conferem credibilidade, como cartas (ficcionais, naturalmente) entre Thomas More e Erasmo de Roterdão, e referências a quadros que existiriam se esta versão da História fosse real; o autor chega mesmo a reescrever passagens dos Lusíadas, justamente rebaptizado como os Inquíadas.

Cruzando momentos basilares da história da civilização ocidental, entre a inquisição espanhola, a reforma de Lutero, a expansão portuguesa, a revolta das populações famintas contra o senhorialismo feudal, a pirataria, a oposição entre Oriente e Ocidente, com a ameaça do Império Turco, a imaginação prodigiosa do autor, que faz também reviver personagens como Cervantes, move-se entre a fábula e a história, de modo a fazer-nos repensar o presente histórico.

Laurent Binet nasceu em Paris em 1972. Autor de A Sétima Função da Linguagem, romance policial em torno da morte de Roland Barthes (publicado pela Quetzal em 2017) e de HHhH (romance metahistoriográfico centrado na morte de um nazi que venceu o Prémio Goncourt para primeiro romance, publicado pela Sextante).

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.